- "Quero ajudar o PT a voltar ao seu leito natural. Se tem uma coisa que o PT tem de se notabilizar é voltar à sua tradição política."
- "A gente não pode permitir que meia dúzia de pessoas deformem esse partido, ele é muito grande."
Lula em campanha - Luiz
Gonzaga Belluzzo e Mino Carta- Carta Capital
Antes de mais nada, impressiona a
paixão. Aos 68 anos, Luiz Inácio Lula da Silva não perdeu o vigor com que
arengava à multidão reunida no gramado da Vila Euclides no fim dos anos 70. E
nos momentos em que sustenta algo capaz de empolgá-lo, ocorrência frequente,
aperta com força metalúrgica o pulso do entrevistador mais próximo, como se
pretendesse transmitir-lhe fisicamente sua emoção. Assim se deu nesta longa
entrevista que o ex-presidente Lula deu a CartaCapital. No caso de Mino, esta
foi mais uma das inúmeras, a começar pela primeira, em janeiro de 1978.
CARTACAPITAL: O senhor
enxerga alguma relação entre a Copa do Mundo e a eleição? Se enxerga, por que e
de que maneira?
LULA: Eu acho difícil imaginar
que a Copa do Mundo possa ter qualquer efeito sobre a preferência por este ou
aquele candidato. Por outro lado, se o Brasil perder, acho que teremos um
desastre similar àquele de 1950. Temo uma frustração tremenda, e a gente não
sabe com que resultado psicológico para o povo. Em 50 jogaram o fracasso nas costas
do goleiro Barbosa.
CC: Em primeiro lugar do
Bigode.
LULA: O Barbosa carregou por 50
anos a responsabilidade, e morreu muito pobre, com a fama de ter sido quem
derrotou o Brasil. E uma vergonha jogar a culpa num jogador. Se o Brasil ganha,
a campanha passa a debater o futuro do País e o futebol vai ficar para
especialistas como eu.
CC: E as chamadas
manifestações?
LULA: Ainda há pouco tempo a
gente não esperava que pudessem acontecer manifestações. E elas aconteceram sem
qualquer radicalização inicial, porque as pessoas reivindicavam saúde padrão
Fifa, educação padrão Fifa, poderiam ter reivindicado saúde padrão Interlagos,
quando há corrida, ou padrão de tênis, Wimbledon, na hora do tênis. Eu acho que
isso é até saudável, o povo elevou seu padrão reivindicatório. E é plenamente
aceitável dentro do processo de consolidação democrático que vive o Brasil. Eu
acho que, ao realizar a Copa, o governo assumiu o compromisso de garantir o
bem-estar e a segurança dos brasileiros e dos torcedores estrangeiros. Quem
quiser fazer passeata que faça, quem quiser levantar faixa, que levante, mas é
importante saber que, assim como alguém tem o direito de protestar, o cidadão
que comprou o ingresso e quer ir ver a Copa tenha a garantia de assistir aos
jogos em perfeita paz.
CC: O povo brasileiro
amadureceu e nós entendemos que o resultado da Copa será bem menos importante
do que foi em 1950. Mesmo que a Seleção perca, não haverá tragédia. Deste ponto
de vista. Efeitos sobre as eleições podem ocorrer em função das chamadas manifestações.
LULA: Eu tenho certeza de que a
presidenta Dilma e os governos estaduais estão tomando toda a responsabilidade
para garantir a ordem. Com isso podemos ficar tranquilos, é questão de honra
para o governo brasileiro. O que está em jogo é também a imagem do Brasil no
exterior. De qualquer maneira, acho que não vai ter violência, e, se houver
será tão marginal a ponto de ser punida pela própria sociedade. Agora se um
sindicato quer fazer uma faixa "abaixo não sei o quê, 10% de aumento",
é seu direito. Eu me lembro que disse ao ministro José Eduardo Cardozo, quando
começou a se aventar a possibilidade de uma lei contra os mascarados:
"Olha, gente, nem brincar com lei contra mascarados porque a primeira
coisa que iremos prejudicar vai ser o Carnaval, não os mascarados". A
Constituição e o Código Penal definem claramente o que é ordem e o que é
desordem e, portanto, o governo tem mecanismos para evitar qualquer abuso.
Recomenda-se senso comum. Nesses dias tentaram até confundir uma frase minha sobre
uma linha de metrô até os estádios. Em 1950, no Maracanã cabiam 200 mil
pessoas, mais de duas vezes as assistências atuais. E verdade, havia menos
carros nas ruas, infinitamente menos carros, mas também não havia metrô.
CC: De todo modo, vale a
pena realizar uma Copa?
LULA: Discordo daqueles que
defendem a Copa no Brasil dizendo que vão entrar 30 bilhões, ou que geraremos
novos empregos. O problema não é econômico. A Copa do Mundo vai nos permitir,
no maior evento de futebol do mundo, mostrar a cara do Brasil do jeito que ele
é. O encontro de civilizações, o resultado dessa miscigenação extraordinária
entre europeus, negros e índios que criou o povo brasileiro. Qual é o maior
patrimônio que temos para mostrar? A nossa gente.
CC: Em que medida essas
manifestações nascem do fato de que houve uma ascensão econômica? Aqueles que
melhoraram de vida reivindicam mais saúde. mais educação.
LULA: Eu acho que não há apenas
uma explicação para o que está acontecendo. Precisamos aprender a falar com o
povo, para que entenda o momento histórico. O jovem hoje com 18 anos tinha 6
anos quando ganhei a primeira eleição, 14 anos quando deixei de ser presidente
da República. Se ele tentar se informar pela televisão, ele é analfabeto
político. Se tentar se informar pela imprensa escrita, com raríssimas exceções,
ele também será um analfabeto político. A tentativa midiática é mostrar tudo
pelo negativo. Agora, se nós tivermos a capacidade de dizer que certamente o
pai dele viveu num mundo pior do que o dele, e se começarmos a mostrar como a
mudança se deu, tenho certeza de que ele vai compreender que ainda falta muito,
mas que em 12 anos passos adiante foram dados.
CC: O governo não soube se
comunicar?
LULA: Eu acho. Eu de vez em
quando gosto de falar de problema histórico, para a gente entender o que de
fato aconteceu neste país. Já disse e repito: Cristóvão Colombo chegou em Santo
Domingo, em1492, e em 1507 ali surgia a primeira faculdade. No Peru, em 1550,
na Bolívia, em 1624. O Brasil ganhou a primeira faculdade com dom João VI, mas
a primeira universidade somente em 1930. Então você compreende o nosso atraso.
Qual é nosso orgulho? Primeiro, em 100 anos, o Brasil conseguiu chegar a 3
milhões de estudantes em universidades. Nós, em 12 anos, vamos chegar a 7,5
milhões de estudantes, ou seja, em 12 anos, nós colocamos mais jovens na
universidade do que foi conseguido em um século. Escolas técnicas. De 1909 até
2002, foram inauguradas 140. Em 12 anos, nós inauguramos 365. Ou seja, duas
vezes e meia o número alcançado em um século. E daí você consegue imaginar o
que significa o Reuni ao elevar o número de alunos por sala de aula, de 12 para
18. Ou o que significa o Ciência Sem Fronteiras, o Fies: 18 universidades
federais novas. Pergunta o que o Fernando Henrique Cardoso fez? Se você pensar
em 146 campi novos, chegará à conclusão de que foi preciso um sem diploma na
Presidência da República para colocar a educação como prioridade neste País.
Nós triplicamos o Orçamento da União para a educação. E pouco? E tão pouco que
a presidenta Dilma já aprovou a lei permitindo 75% dos royalties para a
educação. E tão pouco que a Dilma criou o Ciência Sem Fronteiras para levar 65
mil jovens a estudar no exterior. E tão pouco que ela criou o Pronatec, que já
tem 6 milhões de jovens se preparando para exercer uma profissão. Isso tudo
estimula essa juventude a querer mais. Tem de querer mais. Quanto mais ela
reivindicar, mais a gente se sente na obrigação de fazer. Quem comia acém
passou a comer contrafilé e agora quer filé. E é bom que seja assim, é bom que
as pessoas não se nivelem por baixo. Eu sempre fui contra a teoria de que é
melhor pingar do que secar. Quanto mais o povo for exigente e reivindicar,
forçará o governo a fazer mais.
O que é ruim? A hipocrisia. Nós
temos um setor médio da sociedade, que ficou esmagado entre as conquistas
sociais da parte mais pobre da população e os ricos, que ganharam dinheiro
também. A classe média, em vários setores, proporcionalmente ganhou menos. Toda
vez que um pobre ascende um degrau, quem está dez degraus acima acha que perdeu
algumas coisas. A Marilena Chauí tem uma tese que eu acho correta: um setor da
classe média brasileira que às vezes também é progressista, do ponto de vista
social, mas não aprendeu a socializar os espaços públicos e então fica
incomodado.
CC: Nós entendemos que o
problema é representado pela elite brasileira. Quem se empenha contra a
igualdade?
LULA: Eu sou o mais crítico do
comportamento da elite brasileira ao longo da história. Este país foi o último
a acabar com a escravidão, foi o último a ser independente. Só foi ter voto da
mulher na Constituição de 34. Tudo por aqui resulta de um acordo, inclusive um
acordo contra a ascensão social. Na Guerra dos Guararapes, quando pretos e
índios quiseram participar, a elite disse "não, não vai entrar, porque
depois que terminar essa guerra vão querer se voltar contra nós". Esta é a
história política do Brasil. Ocorre, porém, que a ascensão dos pobres levou
empresas brasileiras aga-nhar como nunca. Não sou eu quem lembra - em 1912,
Ford dizia: "Quero pagar um bom salário para meus trabalhadores para que
eles possam consumir". Por exemplo: pobre em shopping dá lucro. Muitas
vezes os donos não aceitam num primeiro momento, mas depois percebem que é bom.
Tínhamos 36 milhões de brasileiros viajando de avião, agora temos 112 milhões.
CC: Notáveis avanços são
inegáveis. Mas como vai ser daqui para a frente?
LULA: Eu fazia debates mundo
afora, com o Mantega, o Meirelles, às vezes a Dilma. E eu dizia: esses
ministros meus, eles falam da macroeconomia, mas o que eles não dizem é que
essa macroeconomia só deu certo por causa da minha microeconomia. O que foi a
microeconomia? Foi o aumento de salário, foi a compra de alimentos, a
agricultura familiar, foi o financiamento, foi o crédito consignado, foi o
Bolsa Família. Foi essa microeconomia que deu sustentabilidade à macroeconomia.
Na Constituição de 46, quando o trabalho era o assunto, concluía-se: "Não
pode dar 30 dias de férias para o trabalhador, porque o ócio o prejudica".
Chamavam férias de ócio. Agora, as pessoas dizem que o Bolsa Família cria um
exército de vagabundos. E o futuro? Numa escada de dez degraus, os pobres só
subiram dois, um e meio, ainda falta muito para subir. Por isso eu tenho
orgulho da presidenta Dilma, ela sabe que muita gente vai se bater contra ela a
sustentar que, para controlar a inflação e fazer o País crescer, é preciso ter
um pouco de desemprego, arrocho no salário mínimo, ou seja, que é preciso fazer
o que sempre foi feito neste País e que não deu certo. Então, o que o governo
tem de garantir é o aumento da poupança interna, mais investimento do Estado,
mais junção entre empresa privada e pública, mais capital externo para investir
no setor produtivo. Para tanto, é indispensável dar continuidade à ascensão dos
mais pobres. Porque é isso que também vai garantir a ascensão do Brasil no
mundo desenvolvido, com alto padrão de qualidade de vida, renda per capita de
20 mil, 30 mil dólares, e até mais. O Brasil não pode parar agora. Está tudo
mais difícil, mas temos agora o que a gente não tinha há cinco anos, vamos
contar com o pré-sal, daqui a pouco.
CC: Temos um agronegócio
muito exuberante. muito produtivo e competitivo: é possível mobilizar essa
capacidade para estimular a indústria de equipamentos agrícolas?
LULA: Nós já temos uma indústria
de equipamentos agrícolas muito boa. Quando na Presidência, cansei de discutir
com empresários que feiras de agronegócio nós precisamos é fazer na Argentina,
no México, Nigéria, Angola, índia. Temos de mostrar nossa capacidade nos outros
mercados. Esta é uma área na qual o Brasil está pronto, não só porque tem
conhecimento tecnológico, mas também porque tem capacidade de área
agriculturável, terra, sol e água. Sem a vergonha de dizer que exportamos
commodities. Hoje, a commodity tem preço. O que nós precisamos é produzir não
só o alimento, mas a indústria de alimentos, não só a soja, mas o óleo de soja.
CC: Permita-nos insistir:
como vencer as resistências da elite, atiçada pela mídia?
L U L A: No movimento sindical,
em 1969, comecei a negociar com a Fiesp, certamente a elite era muito mais
retrógrada do que hoje. Eu lembro quando nós constituímos a primeira grande
comissão de fábrica na Volkswagen nos anos 80, nós fomos pedir a Antônio
Ermírio de Moraes a criação de uma comissão de fábrica na sua indústria química
de São Miguel Paulista, e significava trabalhador querendo mandar na empresa
dele. Hoje tem uma classe empresarial, mais jovem, que já compreende a
importância da negociação coletiva. Mesmo assim, permanecem setores
retrógrados. Ainda temos coronel que mata gente por este Brasil afora por briga
de terra. Nesses dias a Nissan americana não queria deixar seu pessoal
sindicalizar-se por lá mesmo e eu tive de mandar uma carta para o presidente da
empresa. Mas voltemos à mídia.
CC: A mídia nutre essa elite.
LULA: Eu certamente não sou
especialista nesta questão da mídia e nunca tive muita simpatia dos seus donos.
Toda vez que tentei conversar com eles, cuidei de explicar que ao governo não
interessa uma mídia chapa-branca, como foram no governo Fernando Henrique
Cardoso. Eu não quero isso, não quero que tratem o PT como trataram a turma do
Collor nos dois primeiros anos do seu mandato. Agora, também é inaceitável a
falta de respeito com Dilma. Se querem falar mal, façam-no no editorial do
jornal. Na hora da cobertura do fato, publiquem o fato como ele é. Nunca liguei
para o dono de mídia pedindo para fazer essa ou aquela matéria, mas o respeito
há de ter, tanto mais por parte da comunicação, que é concessão do Estado.
Respeito à instituição, e acho que eles saíram de um momento em que lambiam as
botas da ditadura e evoluíram para o pensamento único a favor de FHC, e contra
o meu governo e contra o da Dilma, e contra a presidenta com agressividade
ainda maior.
CC: E em termos de
informação?
LULA: Quando eu cito os números
da educação, por exemplo, é porque nunca foram divulgados por esta mídia. E
como se houvesse a obrigação de omitir, sem perceber que com isso se
desrespeita o próprio público, que lê, ouve ou assiste. Nem o recente Ibope eles
divulgaram. Nem comentaram a inauguração da Rodovia Norte-Sul, que passaram
três anos criticando. Há uma predisposição ao negativismo, e isso contribui
para uma desinformação da sociedade brasileira. E uma questão é ideológica, se
fosse econômica, eles deveriam ir todo dia à igreja acender uma vela para mim,
porque muitos estão quebrados e se salvaram no meu governo. Eu estou com a alma
tão leve, eu até acho normal o que eles fazem. Vem esse metalúrgico, que a
gente supunha destinado a um fracasso total, e é um sucesso. Vem essa mulher
aí, que agente achava um poste, e ela não é um poste. E essa mulher vai se
eleger outra vez.
CC: Na verdade, o que está
esmaecendo no Brasil e no mundo é o espírito crítico.
LULA: Porque interessa a uma
parte da elite brasileira a negação da política. O que vem depois é sempre
pior, quando você nega a política. A ditadura brasileira foi a negação da
política. O que é muito grave, porque, se você atravessa um momento sem nenhuma
referência, sem ninguém em condições de controlar a situação, o próprio Estado
vai à deriva.
CC: Insistimos novamente:
o governo não se comunica?
LULA: Vocês estão certos, não se
comunica, eu tenho falado para o Guido Mantega, para a Dilma: vendo como está o
mundo hoje, a cada dois meses o governo tem de fazer igual uma empresa com seus
acionistas, que têm fundos de pensão. Ou seja, você tem de fazer viagens e
convencer o fundo de que a sua empresa é rentável e vale a pena investir.
Então, a cada dois meses o governo brasileiro tem de ir a Nova York, não para
falar com aposentados brasileiros, mas com o investidor. Já falei com o
Itamaraty, com Bradesco, Santander, todos se dispõem a articular os maiores
debates brasileiros para mostrar ao mundo realizações e potencialidades. A
Petrobras tem de viajar a cada 30 dias para onde tem investidor. Não podemos
ficar por conta de um jornalista inglês que copiou matéria de um jornalista que
vive no Rio de Janeiro e fica procurando matéria em jornal para se inspirar. O
Brasil precisa reconhecer enquanto vira a sétima economia mundial com viés de
ser a quinta, que lá fora já não se fala bem da gente. José Luis Fiori escreveu
um artigo comparando Brasil e México para acabar com o complexo de vira-lata de
quem fala que o Brasil está pior que o México. O que o México tem melhor que o
Brasil? Eu quero que o México fique cada vez mais rico, mas a comparação com o
Brasil é inadequada, porque o Brasil é maior que o México em tudo. Dias atrás,
estava aqui com meu amigo Gerdau e perguntei: como está o setor siderúrgico? E
ele: não está muito bem. Perguntei: quanto é que você está ganhando no Brasil?
Somente aqui, respondeu. Perguntem para o Josué Gomes da Silva, da Coteminas,
onde ganha dinheiro? No Brasil. O mercado interno brasileiro é uma bênção de
Deus que a elite não sabia existir, eles nunca imaginaram que podíamos
ultrapassar os 35 milhões de consumidores.
CC: Que chances há de
mudar essa falha do governo?
LULA: Não é fácil, eu sei o que
foram meu primeiro e segundo mandatos. Tenho dito com a Dilma que não tem de
dar ouvidos a quem fala que gastamos muito com publicidade. Eu acho que, se foi
anunciado um programa hoje, e no segundo dia não houve repercussão, vai em rede
nacional. O governo tem de dizer o que a mídia não divulgou, porque se não
disser, o silêncio se fecha sobre o fato. Dois dias de tolerância, e coloca um
ministro em rede nacional, não precisa ir a presidenta todo dia. Mas não
fiquemos nisso. O Marco Regulatório tem de ser compreendido. Não é censura,
queremos é fazer valer a Constituição de 88, tanto mais quando entram em cena
Facebook e companhia, eu nem sei o nome de tudo. Existe Marco Regulatório de
1962. O Franklin Martins foi feliz ao observar: "Em 62, a gente tinha mais
televizinhos do que televisores". Eu lembro que menino ia à casa do
vizinho ver televisão, a gente só podia sentar no chão, o sofá era do dono da
casa e ainda ele pisava no dedo da gente. Para assistir luta livre, tinha de
gastar dinheiro no bar, o dono cobrava. Hoje acontece essa revolução
tecnológica e você não quer discutir sua regulamentação?Então, o Marco
Regulatório e a reforma política são dois temas de ponta que o PT tem de
assumir. Temos de convocar uma Constituinte própria para fazer uma reforma
política.
CC: O que seria esta Constituinte
própria?
LULA: Não se destinaria a
elaborar uma nova Constituição, e sim discutir a reforma política,
exclusivamente. O Congresso tem de aprovar a ideia do plebiscito, e na
convocação você diz o que é. E aí, não faltam recursos jurídicos para adotar a
nomenclatura adequada. É insuportável governar com o Congresso tomado por
tantos partidos. E preciso ter critério para organizar um partido, tem de haver
cláusula de barreira.
CC: Este problema não
resulta do fato de que os partidos brasileiros nunca foram o intermediário
necessário entre a nação e o governo?
LULA: O Brasil não tem tradição
de partido nacional, a tradição são tribos locais, com caciques regionais.
Depois do PCB, o PT tornou-se o único partido nacional, cuja atuação partidária
a direção decidia. Mas o PT erra quando começa a entrar na mesmice dos outros
partidos. Erra quando usa a mesma prática dos outros partidos. Eu não quero
voltar às origens, briguei a vida inteira para ser classe média e agora vou
voltar a brigar.O PT, tem que saber, criar esse partido não foi fácil. Lembro
de alguém que vendeu uma cabrita, que dava leite para amamentar o filho, para
legalizar o PT. E até hoje há gente que anda três, quatro dias de canoa para
participar de uma convenção. A gente não pode permitir que meia dúzia de
pessoas deformem esse partido, ele é muito grande. É um partido que o próprio
povo dirige. Não é uma coisa simples, nós temos de valorizar isso. Já disse na
convenção do PT: quero ajudar o PT a voltar ao seu leito natural. Se tem uma
coisa que o PT tem de se notabilizar é voltar à sua tradição política. E isso
que dá autoridade moral e força para a gente.
CC: Não é fácil manter a
coerência na hora da coalisão...
LULA: Não é vergonha você
repartir administração com outros partidos, sempre que pastas sejam definidas
na base da afinidade. A reforma política é a briga que nós temos de ter hoje.
Não acho que tenha de ser da Dilma. Ela é candidata, acho que a briga tem de
ser de todo o partido. O Rui Falcão tem sido de grande valia nessa luta. Agora
vou fazer campanha pelo Nordeste, essa é a contribuição que me cabe no momento.
E, se eu fosse o governo, ficaria ouvindo todo programa de rádio, de televisão,
e o que não for verdade, pedir direito de resposta. Utilizar a internet e não
ficar chorando "a Globo não me dá espaço". A gente tem outros
instrumentos para dizer o que quer. Estou muito disposto, física e
psicologicamente, para rodar o Brasil.
CC: A campanha, assumir os
palanques...
LULA: Assumir os palanques.
Estarei com Dilma onde ela achar conveniente estar. Preciso tomar muito
cuidado, porque haverá na base aliada interesses de que eu não vá, porque a
Dilma não pode ir, ela é candidata e da base aliada, mas eu tenho compromisso
com o meu partido. Eu sei que isso vai ser um problema, a gente vai ter de
conversar e negociar muito. Estou feliz, sabe por quê? Eu sempre achei que quem
deixa a Presidência fica pensando: como eu estarei daqui a algum tempo? Porque
as pessoas vão esquecendo, você vai perdendo importância. Eu lembro que em
2002,2006, ninguém queria o FHC no palanque. Nem Serra colocou. Em 2010, Serra
me apresentou como amigo dele e não colocou o FHC. Então, eu me sinto feliz, eu
estou bem, eu ainda tenho consciência de que sou uma pessoa importante na
política brasileira, e como tal direi que Dilma é a pessoa mais talhada para
cuidar do Brasil.
CC: E essa história que a
imprensa criou do "Volta Lula"?
LULA: O "Volta Lula"
começou já na época que eu era presidente, quando pediam o terceiro mandato.
Eu, graças a Deus, aprendi a ter responsabilidade muito cedo. E aprendi que, ao
aceitar o terceiro mandato, por me achar insubstituível, poderia permitir que
outros também achassem, com a possibilidade de alguém, algum dia, tentar o
quarto. Não é prudente brincar com democracia. Cumpri meus dois mandatos, saí
cercado pelo carinho do povo. Se, em algum momento, tiver de voltar, posso
daqui a quatro anos. Mas não é a minha prioridade. Estarei então com 72 e acho
que tem de ser gente mais jovem, com mais vigor físico e capacidade de
administração. Mas em política a gente não pode dizer que não, nem sim. Nunca
me passou pela cabeça voltar. Em todo caso, minha relação com a Dilma é muito
forte, e de muito respeito e admiração pelo caráter dela. Bem formada
ideologicamente e muito leal. Nunca iria disputar sua candidatura.Não faltou
quem quisesse minha volta, mas quando o Rui Falcão botou em votação, deixei
claro: "Quero que saibam, sou candidato a cabo eleitoral da companheira
Dilma Rousseff para o segundo mandato à Presidência da República".
CC: E quanto aos
adversários?
LULA: Conheço o Eduardo Campos, é
meu amigo, gosto dele profundamente. Conheço o Aécio, ele não tem a mesma
firmeza ideológica do Eduardo, tem outro compromisso, é um representante mais
afinado com a elite. Mas a Dilma é a mais preparada. Fico triste que não
conseguimos construir algo capaz de manter o Eduardo Campos junto da gente. Mas
era destino.
CC: E a Marina?
LULA: Eu gosto muito da Marina,
como figura humana. Foi minha companheira no PT por 30 anos, tenho por ela um
carinho muito grande, mas acho que, de vez em quando, comete equívocos na
análise política dela, meio messiânica. Imaginei-a candidata, e agora entra de
vice. Nisso não consigo entender a Marina. Mas não confundo relação de amizade
com a minha decisão política. Tenho amizade com o Aécio mais formal do que com
o Eduardo e sua família.
CC: Dilma ganha no
primeiro turno?
LULA: A ganhar no primeiro turno
por 51% a 49% prefiro ganhar no segundo turno, com 65% a 35%. Reeleição é
sempre muito difícil, mas no segundo turno você pode consolidar um processo de
alianças com a coalisão e você é eleito com mais desenvoltura, e também permite
fazer um debate mais profundo. No primeiro turno todo mundo fala a mesma coisa,
promete tudo para o povo. Eu acho que a Dilma está tranquila. Se em 2002 a
esperança venceu o medo, acho que agora a esperança e a certeza do que pode ser
feito pode vencer o ódio.
CC: A campanha será
sangrenta?
LULA: Pelas características
dos candidatos, acho que não. De resto, o resultado de uma campanha não define
apenas vencedor e derrotados, é o grau de politização da sociedade, é o gosto
pela política, é perceber que durante a campanha os candidatos aprenderam
alguma coisa e deram um salto de qualidade. Quando disputei com o Serra, nós
tivemos uma campanha mais civilizada do que com o Alckmin. Ele se apresenta
como cidadão refinado, mas foi de extrema agressividade.
CC: Qual seria o
adversário mais provável para o segundo turno?
LULA: Eu acho que, em um segundo
turno, será tucano. O PSDB tem base partidária mais organizada, governam São
Paulo, Paraná, alguns estados importantes no Nordeste, e tem mais tradição de
palanque. Já o PSB tem pouco palanque estadual, a campanha do Eduardo vai ser
mais difícil do que em 1989.
CC: E o Padilha. candidato
petista em São Paulo?
LULA: O Padilha é um daqueles
fenômenos. Eu disse outro dia em Sorocaba ao Padilha: "Depois de quem o
precedeu, Arruda Sampaio, Suplicy, Dirceu, Marta, Genoino, Mercadante, você é o
melhor candidato de todos nós, o mais alegre, o mais simpático, sua capacidade
de comunicação com o povo é fantástica, unificou o partido". Mas é uma
campanha difícil. Primeiro, porque os tucanos têm uma base sólida em São Paulo,
e há conservadorismo no estado e isso dá quase que uma garantia. Não sei se
Paulo Skaff vai ser candidato, há dois anos que faz campanha não como
candidato, mas como presidente da Fiesp. Agora o desafio para o PT é ter os
votos que o partido tem habitualmente na cidade, todas as eleições.
CC: Fale da central de
boatos a respeito do seu filho Fábio.
LULA: Ao mesmo tempo que sou
defensor intransigente da liberdade que temos na internet, acho que somos
vítimas dessa liberdade, porque o cidadão entra no seu quarto, seu escritório,
e fala a besteira que quiser. Há muito tempo vêm denúncias, outro dia mostraram
a sede da Esalq e disseram que era a casa do meu filho, outro dia ele era dono
da Friboi, um dia desses ele foi à Itaipu com o Samec passear, daí um jornal
disse que ele estava fazendo negócios, inventaram que ele tem um jato.
Conseguimos detectar o paradeiro de dez pessoas, uma era do Instituto Fernando
Henrique Cardoso, filho do ex-ministro Graziano. Os envolvidos foram acionados,
um veio prestar depoimento, disse: "Mas eu sou eleitor do Lula, eu só
citei, não sabia se era verdade, mas coloquei". Muitos pedem desculpas. O
Graziano veio aqui também. Quando, muito tempo atrás, eu fui contra a invasão
do Afeganistão pela então URSS, diziam que eu era da CIA, depois eu era visto
pela direita como o cara do Partidão. Isso me permitiu continuar percorrendo o
caminho do meio. Mas vale acentuar que nós chegamos à excrescência da
excrescência do comportamento humano. Um dia desses eu vejo O Que Sei de Lula,
um livro. O autor não conviveu comigo um único segundo para escrever a orelha
do livro. Fico pensando o que faço com um cidadão desse? Acabo percebendo que o
melhor é a desmoralização pela mentira. O Romeu Tuma Jr. não merece o
comportamento do pai dele. O pai dele foi um cidadão digno. Quando a minha mãe
estava para morrer, ele, meu carcereiro, me deixava sair da cadeia às 2 da
manhã para visitá-la. Então, quando um cidadão conta uma mentira dessa, o que
fazer? Processar? Acho que falta um pouco de senso de responsabilidade no
comportamento das pessoas. De verdade, falta reconstruir a estrutura social da
família. Quando eu era pequeno, tinha vontade de comer uma maçã embrulhada em
papel azul, e ficava diante da barraca olhando e olhando, e sabe por que eu não
pegava e não saía correndo? Para não envergonhar a minha mãe. Ela era a minha
referência de comportamento.
CC: Mas uma política
social que conseguisse alcançar certo grau de igualdade, isso não recriaria
automaticamente valores perdidos?
LULA: Há todo um conjunto de
fatores viáveis, não concordo com diminuir a idade penal e colocar mais polícia
na rua para coibir a violência. Isso não vai funcionar. Eu acho que, se houver
mais gente na escola e mais gente trabalhando, vamos caminhar no rumo certo.
CC: Seria correto dizer
que há uma concepção errada da polícia num Estado democrático. Trata-se de uma
instituição absolutamente necessária. mas muito maltratada, porque ela não é
para reprimir. é para prevenir. Será que não vivemos uma crise institucional
dos poderes que haveriam de constituir um Estado moderno?
LULA: Quando a gente fala em
reforma, precisamos reformar também o Poder Judiciário. E tudo muito lento. Mas
a Justiça pede por uma reforma, porque é justo exigir mais competência, é
preciso termais estrutura para chegar a um cargo na Justiça. Quanto à polícia,
tenho uma observação. A nossa polícia sabe que em muitos casos o crime
organizado está mais preparado do que ela. Todo ser humano tem medo. Há casos
em que o policial tira a farda para ninguém saber que ele é policial. Ele vai
trabalhar com um pouco de medo, e o medo faz você mais violento. Se você aborda
o suspeito, já de revólver em punho, caso este reaja, você puxa o gatilho. Como
é que você resolve isso? Nós cometemos um erro na Constituição, que foi dar
muita autonomia aos estados para que sua polícia se desvincule com muita
autonomia da PM. Dá a impressão de que os estados saberiam lidar com a
criminalidade, mas na prática muitos estados ficam reféns da própria polícia.
Primeiro, seria preciso que os policiais se formassem por cursos de
inteligência, assim como se formam em tiro ao alvo e arte marcial. Segundo, é
preciso pagar melhor. Acho que, no caso da organização da polícia, o problema
está na Constituição de 88. Nas Forças Armadas, nós liberamos 7 mil, 8 mil
fardados por ano, que poderiam ser chamados diretamente para a polícia. Mas
não, têm de prestar concurso. E preciso rediscutir a respeito. Sem deixar de
partir do pressuposto de que nenhum governador quer abrir mão do controle da
polícia. Decisivo seria definir o papel de cada um. Porque, quando um
governador prende um bandido, ele gosta de aparecer na televisão, mas, quando
ele não prende, o governo federal é o culpado. Essa ponderação explica-se a
outros campos. A educação. Quem é que cuida? O governo federal, estadual ou
prefeitura? E no ensino técnico? Saúde? Nós precisamos definir tudo isso. Temos
de repactuar os entes federados. Construir um pacto federativo, não só a partir
da discussão financeira, mas também de acordo com a responsabilidade de cada
um. Penso que no segundo mandato a Dilma terá de fazer coisas novas, é
importante promover debates que ainda não foram feitos. Só se fala em política
tributária, e ninguém quer política tributária. Eu tentei implementar duas
vezes, ninguém quis. Dilma tem de fazer um esforço muito grande para destravar
este país.
CC: Até que ponto o senhor
pode influenciar Dilma na escolha dos futuros ministros?
LULA: Eu não quero influenciar a
Dilma. Faço política por uma transferência de confiança. Eu confio na Dilma. Se
for eleita, vai fazer suas escolhas, vou torcer para dar certo. Se achar que
ela está errada, vou dar uns palpites. Se em algum momento ela resolver
discutir comigo alguns nomes, eu também não terei dúvidas em ajudá-la.
CC: Digamos que a
presidenta não queira ouvir ninguém. quem quer que seja.
LULA: Não existe isso.
CC: Admitamos uma sugestão
não solicitada: "Este cara é muito bom".
LULA: Vamos supor que a Dilma
seja eleita e eu resolva indicar o Belluzzo. E ela falasse "não". O
que iria acontecer? Ia ficar um arranhãozinho na nossa relação de amizade. Daí
eu preferir não indicar. E mais saudável, nem eu nem ela teremos decepções.
Agora, se o partido vier discutir comigo quais nomes vai indicar, eu direi o
que acho a respeito. Com ela, não. A não ser que a escolha me pareça absurda e
então não hesitarei: "Este é problema".
CC: Como analisar o avanço
na relação dos BRICS?
LULA: Neste mundo globalizado a
gente tem de procurar parceiros. Acabou o tempo em que o mundo pobre esperava
tudo da Europa e dos Estados Unidos. Então, eu penso que o Brasil tem de
fortalecer as suas relações. Eu sou da tese de que a gente tem de criar um
colchão de proteção do Brasil em suas relações externas, do ponto de vista
estratégico, do ponto de vista da segurança, econômico, do ponto de vista
estratégico do desenvolvimento científico-tecnológico. Porque quem já tem não
quer repartir com a gente.Por isso o Brasil há de fortalecer cada vez mais sua
participação, sobretudo na América do Sul. E ter aqui, na América do Sul, algo
muito forte na área do comércio e da interação das nossas empresas. Ter
empresas fortes e bancos de desenvolvimento fortes. O BNDES tem de arcar com um
papel mais importante e a gente tem de construir o Banco Sul. Acho que temos de
fazer o mesmo com a África, porque agora, no século XXI, a África dará um salto
de qualidade.E com os BRICS, precisamos tomar decisões políticas. Nós somos uma
espécie de pêndulo do planeta Terra, então não podemos ficar dependendo do
dólar para fazer negócio. Temos de construir, e não esperar que o mundo
construído no século XIX, no começo do século XX, venha nos salvar. Nós podemos
fazer a diferença. Eu acho que esse acordo da Rússia com a China, esse negócio
do gás, foi um tapa com luva de pelica na cara da Aliança do Atlântico. Acho
que os BRICS devem funcionar como uma espécie de segurança na relação de cinco
economias importantes. Por que eu falo isso? O Mercosul, quando cheguei à
Presidência, não valia nada. A Alca é que estava na moda. Nós não implantamos a
Alca e o Mercosul passou de 10 bilhões para 49 bilhões de fluxo de comércio
exterior. A América do Sul não valia nada, o Brasil não conversava com ninguém,
ninguém conversava com o Brasil.
CC: Não é do interesse da
elite que esses dados apareçam.
LULA: O Brasil é o primeiro
produtor, e primeiro exportador, de carne processada, suco de laranja, tabaco,
o segundo de soja. Tudo que você imaginar, o Brasil está entre os cinco do
mundo. Vamos gostar deste País!
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