Marqueteiro Nelson
Biondi agradece as campanhas da oposição por não terem desconstruído o governo e a imagem de Geraldo Alckmin na eleição passada
[Nesta reportagem, que mostra a trajetória do atual governador de SP, Geraldo Alckmin (PSDB), leia o que falam alguns de seus assessores sobre seu perfil de atuação política, entre os quais Nelson Biondi (realçado em amarelo)]
[Nesta reportagem, que mostra a trajetória do atual governador de SP, Geraldo Alckmin (PSDB), leia o que falam alguns de seus assessores sobre seu perfil de atuação política, entre os quais Nelson Biondi (realçado em amarelo)]
“Eu disse lá
atrás: eles viriam para a desconstrução do governo. E tinha aí um caralhão de
coisa. Sei lá, qualquer equívoco de política pública. Eles tinham a segurança
para falar pra cacete, a crise da água, o negócio de cartel. Só que foram batendo
em assuntos que eram o contrário da percepção do eleitor”, disse Biondi.
Revista Piauí - Nº 99 - Dezembro 2014
O paulista Ge-ral-do - por Julia Dualibi
Quem
é o político católico e caipira que assume pela quarta vez o governo de São
Paulo
Em abril de 1964, o governo de São
Paulo desapropriou das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, no Morumbi,
Zona Sul da capital, um terreno de pouco mais de 67 mil metros quadrados.
Tornada bem público, a área, que abrigaria a Universidade Comercial Conde
Francisco Matarazzo, abateu parte das dívidas fiscais que o grupo empresarial
do conde Chiquinho tinha com o estado. O projeto original da universidade, de
1938, era de autoria do italiano Marcello Piacentini, arquiteto oficial do
regime fascista de Benito Mussolini. Ao longo dos anos, o prédio passou por
alterações que resultaram num arremedo arquitetônico de referências
neoclássicas, barrocas e coloniais, no qual cavalos de bronze misturam-se a
estátuas de mulheres de 3 metros de altura.
Em 1965, com o nome de Palácio dos
Bandeirantes, foi inaugurada a nova sede do Executivo. Na cerimônia, o
governador Adhemar de Barros comemorou o fato de a nova casa distar 13
quilômetros da antiga sede do governo, o Palácio dos Campos Elíseos, no Centro:
“Aqui eu posso ficar em paz. Posso caminhar sem que ninguém me peça dinheiro ou
emprego.” Em 1966, quando o fim do mandato o obrigou a se afastar daquele
jardim, Adhemar era o político que havia governado São Paulo por mais tempo,
desde que os governadores passaram a ser eleitos pelo voto direto, em meados do
século XX.
Em 8 de março de 2013, o recorde de
Adhemar de Barros foi quebrado por Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho. O
médico anestesista de 62 anos, nascido em Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba,
interior de São Paulo, casado, pai de três filhos e avô de quatro netos, já
passou, até 1º de dezembro deste ano, 3 281 dias no comando do estado que reúne
22% do eleitorado brasileiro. Desde que ocupa o Palácio dos Bandeirantes, não
foram poucas as vezes que o tucano anunciou a volta da sede do governo para o
Centro. Mas, assim como Adhemar, preferiu a paz no Morumbi.
No último dia 5 de outubro, Alckmin
foi reeleito em primeiro turno com 12 230 807 votos. O feito renderá ao PSDB,
principal partido de oposição ao governo federal, 24 anos no poder do estado
que representa 32% da economia nacional, com um Produto Interno Bruto de 1,4
trilhão de reais. A proeza é ainda mais significativa levando em conta que
muitos, inclusive entre os próprios tucanos, consideram sua gestão medíocre. O
governo não tem uma grande marca. Saúde e segurança pública são criticadas pela
população. A execução de programas-chave foi lenta, e ele não conseguiu cumprir
promessas, como a que fez em 2012 sobre a expansão do metrô: dos 30 quilômetros
prometidos, entregou 4.
Seu secretariado é um condomínio do
qual fazem e fizeram parte deputados sem conhecimento técnico das respectivas
pastas, oriundos de partidos da sua base na Assembleia: do PRB de Celso
Russomanno e do PP de Paulo Maluf ao PSB de Marina Silva, são quinze legendas
no total. No último ano, Alckmin também viu trincar o discurso da ética na
esteira do escândalo de corrupção envolvendo o cartel dos trens, no qual
integrantes do PSDB e servidores públicos são acusados de participar de um
esquema de cobrança de propina de fornecedores do Metrô e da Companhia Paulista
de Trens Metropolitanos, a CPTM. A tropa de choque de Alckmin na Assembleia
enterrou alguns pedidos de investigação do caso.
Como se não bastasse, o estado passa
pela maior crise de abastecimento de água da história. O Sistema Cantareira –
com capacidade para 978 bilhões de litros, responsáveis por abastecer 8,8
milhões de pessoas, quase metade dos moradores da região metropolitana de São
Paulo – secou. A despeito disso, Alckmin venceu a disputa eleitoral em 644 das
645 cidades do estado, incluindo a capital.
Em uma reunião realizada na ala
residencial do palácio, depois da vitória, o sociólogo Antonio Lavareda,
responsável por pesquisas qualitativas com grupos de eleitores, declarou ao
próprio Alckmin: “A sua eleição ocorreu mais pela aprovação à sua imagem do que
pela sua gestão.” Sobretudo entre eleitores de baixa renda, a imagem do
governador é imbatível. Sua figura pública, associada à ética e ao respeito à
família, o transforma numa espécie de Teflon: nele não colam denúncias de
desvios ou corrupção.
“Ele é um cara conservador,
extremamente católico. Tem uma atitude republicana e uma visão cristã das
coisas. Entende que o Estado tem que ajudar os mais pobres, mas não é nem de
longe um revolucionário. É um Montoro sem a mesma solidez democrática”,
explicou um dos responsáveis pelas pesquisas encomendadas pelo governo tucano,
comparando Alckmin ao governador André Franco Montoro (1983–87). “Ele não é
elitista, parece uma pessoa comum da classe média. Por isso, praticamente não
precisa de pesquisas de grupo. O que ele pensa é o que pensa a média da
população paulista”, comentou um integrante da campanha.
No domingo da reeleição, o tucano
comeu uma feijoada no almoço, no próprio palácio, e a seguir foi para a sala de
tevê da ala privativa acompanhar a apuração. Enquanto lia os jornais do dia,
espiava o desenrolar da votação num telão – assim como o jardim de inverno
palaciano, um legado de José Serra. Na sala também estavam a primeira-dama,
Maria Lúcia Alckmin, que todos conhecem como Dona Lu, e os filhos Sophia, Geraldinho
e Thomaz, além do amigo Frederico D’Ávila e sua mulher. Mais tarde chegou o
médico acupunturista chinês Jou Eel Jia, também amigo do tucano.
“Pai, não tem mais jeito. A partir de
agora, para você não ganhar, todas as urnas terão que ser contra você”,
antecipou Geraldinho, filho do meio, que trabalha na área de seguros do banco
Santander. “Vamos aguardar”, Alckmin respondeu. Pouco depois, a GloboNews anunciava que ele estava matematicamente reeleito.
Comemoração no ambiente, com pulinhos, palmas e abraços. “Gegê!”, saudou-o a
primeira-dama, beijando o marido.
O telefone começou a tocar.
“Ministro, muito obrigado”, disse Alckmin ao petista Alexandre Padilha,
ex-titular da Saúde, que ligara para cumprimentar o adversário pela vitória.
Depois foi a vez de Paulo Skaf, do PMDB, que ficou em segundo lugar: “Ô, Skaf,
parabéns pela campanha.” Ao redor dele, caretas e xingamentos com as mãos
apontadas em direção ao telefone. Alckmin pediu ao ajudante de ordens Carlos
José Benassi que trouxesse sua jaqueta e seguiu para a comemoração na sede do
PSDB. Voltou para casa depois das dez da noite, ainda jantou peixe com legumes,
tomou uma Coca-Cola e foi dormir.
Quatro
dias após a vitória de seu candidato, às vésperas de viajar para descansar e
jogar golfe, Nelson Biondi, marqueteiro de Alckmin, sentia-se à vontade para
dar pitacos no segundo turno entre Aécio Neves e Dilma Rousseff. “Pernambuco
vai desequilibrar essa porra a favor do Aécio. Mineiro é foda... Mas virá muita
pancada. Vão tentar desconstruir ele como gestor. Mortalidade infantil: uma
bosta em Minas. Não construíram uma escola técnica. Vão usar o conceito ‘quem
conhece Aécio não vota nele’”, comentou, do alto de sua sala envidraçada, numa
produtora com mesas e ilhas de edição vazias. Do rescaldo da campanha, uma
letra A gigante, de Alckmin, colada no vidro, nas cores da bandeira paulista
(preta, branca e vermelha), seis televisões penduradas na parede, duas delas já
desligadas, e dois potes com restos de frutas secas e pistaches, abandonados na
mesa de reunião.
“Eu disse lá atrás: eles viriam para
a desconstrução do governo. E tinha aí um caralhão de coisa. Sei lá, qualquer
equívoco de política pública. Eles tinham a segurança para falar pra cacete, a
crise da água, o negócio de cartel. Só que foram batendo em assuntos que eram o
contrário da percepção do eleitor”, disse Biondi. “O eleitor abria a torneira e
tinha água. Pô, uma limonada!”, completou o marqueteiro.
Biondi chegou até Alckmin pelo
subsecretário de Comunicação, Marcio Aith. Com trajetória na Gazeta Mercantil, Folha de S.Paulo e revista Veja, Aith
se tornou um dos homens fortes do governo. O jornalista é apontado como o
grande responsável por conferir ao tucano um perfil menos contemporizador,
incentivando-o a confrontar abertamente seus críticos e adversários, deixando
para trás a velha imagem do “picolé de chuchu” – apelido dado em 2000 por José
Simão. Ex-sócio de Duda Mendonça e ex-marqueteiro de Paulo Maluf e Serra,
Biondi sustenta que há uma dissonância entre a imagem de “picolé de chuchu” e o
modo como o eleitor enxerga o governador, “um cara com pulso”.
Alckmin, com 76 quilos, distribuídos
por 1,74 metro, não pode ser chamado nem de alto nem de baixo; não é gordo, mas
tampouco é magro. Olhos, boca e orelhas são discretos e simétricos, não
demarcam território. A calvície é disfarçada por fios de cabelo nas laterais e
no cocuruto, sempre engomados e penteados para trás.
O traço mais marcante de sua
fisionomia é o nariz pontiagudo, que evoca a figura de Cyrano de Bergerac, mas
até esse detalhe é de certa forma neutralizado pelos óculos retangulares, de
aros finos. Nas ruas, percebe-se que, mesmo após tanto tempo de poder, o
paulista nem sempre o reconhece. “Ei, vi você no Silvio Santos!”, gritou uma
mulher durante uma caminhada num parque na Zona Norte da capital. “Tudo bem,
querida?”, respondeu o tucano, com seu cumprimento protocolar. A moça virou-se
para mim e perguntou: “Quem é esse mesmo?” Alckmin conta que é confundido com
Britto Júnior, apresentador da Record, e que já o chamaram de Serra e até de
Maluf.
Vestindo
uma camisa azul, de mangas arregaçadas e com o monograma NB, uma corrente de
ouro no pescoço, Biondi levantou-se da cadeira e começou a procurar alguma
coisa pelo escritório. Voltou com uma pasta de plástico, de onde tirou dados de
pesquisas. Passou a explicar que a boa avaliação do governante em áreas
críticas, como saúde e segurança, se dá pelo reconhecimento do empenho em
resolver os problemas. “Quem era mais capaz de melhorar a saúde? Ele. A
educação? Ele. Gerar empregos? Ele. Melhorar a segurança? Ele. Isso apesar da
expectativa de que os Seus Fudêncios fossem as novidades da eleição e tal.
Picas!”, disse o marqueteiro, referindo-se a Skaf e Padilha, supostas novidades
no cenário eleitoral. “E o Alckmin tinha o que mostrar. O estado que mais
prendeu no país foi São Paulo”, completou. A propaganda tucana se orgulhava de
dizer que São Paulo abriga a maior população carcerária do Brasil, com 221 mil
pessoas atrás das grades – num sistema que comporta 128 mil.
O eleitor típico de Alckmin é pobre,
tem escolaridade baixa e renda familiar de até dois salários mínimos. “Foi esse
pessoal que nos elegeu”, comentou o governador dois dias após sua vitória, em
visita à favela de Paraisópolis, a menos de 2 quilômetros do Palácio. Ele
costuma ir lá uma vez por semana. Toma cafezinhos e conversa com moradores, ao
lado do motorista e do ajudante de ordens. Gosta de dizer que, quando aparece
no Palácio um “caboclo meio chique”, propõe um passeio pela favela. “Nego toma
um susto”, disse, empregando um vocabulário mais informal do que de costume,
acompanhado de um sorriso malicioso, típico dos momentos em que dispara
pequenos comentários sardônicos. “Hoje aconteceu um fato histórico”, ele disse
em agosto, durante a campanha, num café no Centro da cidade, com o mesmo
sorrisinho estampado: “José Serra estava na porta de uma fábrica, às seis da
manhã, acordado.”
O interior paulista, onde vive a
maior parte do eleitorado do estado, está para o tucano como o Nordeste está
para Lula. Lá, 53% das pessoas consideram seu governo bom ou ótimo, contra 38%
na capital. São eleitores majoritariamente católicos, conservadores e mais
velhos. Querem, acima de tudo, ordem. “Não explorei o episódio do Carandiru
porque eu tinha muito medo de que as pessoas achassem o massacre do caralho”,
contou Biondi sobre a decisão de não criticar o assassinato de 111 presos pela
polícia durante o governo de Luiz Antônio Fleury Filho, que coordenou a
campanha de Skaf. “Os caras querem...” Interrompeu a fala, pensou e completou:
“Bandido bom é bandido morto. Hoje isso tem muito respaldo na sociedade.”
Embora fosse domingo, Alckmin estava
vestido formalmente, de calça bege, camisa branca e paletó azul-marinho, quando
cheguei a seu gabinete, no final de uma manhã de novembro. O ambiente, com
paredes de lambri e pé-direito duplo, é decorado por móveis escuros, tapete
oriental e um jogo de duas poltronas e sofá de couro azul, atrás do qual há um tríptico
representando os bandeirantes. Do lado oposto ao sofá fica a mesa de trabalho,
quadrada e com pernas torneadas, que pertenceu ao governador Rodrigues Alves,
“o último presidente paulista”.
Assim que entramos, o tucano
dispensou o ar-condicionado e começou a abrir cada um dos quatro janelões do
gabinete. Perguntei a ele a que atribuía sua vitória, a despeito da conjuntura
desfavorável. Alckmin se levantou da poltrona e pegou de cima de sua mesa um
papel dobrado. Mostrou um mapa azul, pontuado por pequenas manchas vermelhas,
ilustrando sua vitória sobre o PT em 594 das 645 cidades do estado na eleição
de 2010. Excluindo a região metropolitana, as demais cidades onde o PSDB havia
perdido tinham em comum a presença de assentamentos de reforma agrária.
“Por que as pessoas que foram
assentadas não votam no PSDB? A minha tese é a seguinte: em política, você não
obriga, você conquista. Então, fui aos assentamentos, ouvi as pessoas, levei
energia elétrica, criei um programa de compras governamentais direto da
agricultura familiar. Nenhum paternalismo, nenhum assis...”, interrompeu antes
de completar a palavra assistencialismo. E continuou: “Todo apoio ao trabalho.”
Animado, desdobrou o papel, como se encerrasse um suspense: surgiu um enorme
mapa do estado, bem maior que o anterior, agora todo azul, com um único
micropontinho vermelho, o município de Hortolândia, governado pelo PT. Era o
resultado da eleição deste ano. “Não tem nenhum município aqui com reforma
agrária em que eu tenha perdido. Então, não tem essa história de que o eleitor
tem carteirinha.”
No
fundo de um corredor no 3º andar da Câmara Municipal de São Paulo fica o
gabinete do vereador tucano Mario Covas Neto. Zuzinha é filho do governador
Mario Covas, que Alckmin sempre menciona como sua maior referência política.
“Geraldo é o condutor seguro. Você quer ir para o Rio de Janeiro, pode chamar o
Geraldo. Ele vai estar com o pneu calibrado, a revisão do carro feita, não vai
faltar gasolina, não vai ultrapassar velocidade e vai chegar com segurança. No
entanto, se tiver um congestionamento, não espere que ele faça um desvio”,
resumiu o vereador, para quem Alckmin sempre teve o mesmo estilo, “o de um
sujeito meio mineiro, que evita polêmicas, bola dividida, é extremamente gentil
e educado com as pessoas.” Com um retrato do pai ao fundo, Zuzinha disse que
essa característica colocou Alckmin numa posição equidistante entre os
diferentes grupos do partido, e fez com que ganhasse espaço no PSDB: “Era o
elemento neutro, o que não tinha vinculações tão nítidas e não causava
problemas a ninguém.”
Em 1994, Alckmin era deputado federal
e ocupava a presidência do PSDB paulista, durante a qual rodou, ora de ônibus,
ora num Gol, todas as cidades do estado. Passou a ser cotado para vice na chapa
de Covas, ao lado do economista Walter Barelli. Covas tinha simpatia por
Barelli, mas, num movimento conciliatório, chamou a seu apartamento deputados
do PSDB e abriu o tema para votação. Alckmin foi o preferido. “Tinham que
escolher um candidato que fosse palatável para o Covas, mas que também fosse
para o Montoro, o Fernando Henrique e o Serra. O Geraldo era essa pessoa”,
lembrou Zuzinha.
No Palácio dos Bandeirantes,
Alckmin manteve uma atuação discreta e dedicou-se ao Programa Estadual de
Desestatização. “Ele teve uma atitude absolutamente colaborativa, e isso foi
conquistando o meu pai.” Em 2000, Covas decidiu dar peso político a
“Geraldinho” e o escolheu candidato a prefeito da capital pelo PSDB. Por sorte
de Alckmin, ele perdeu a eleição – Maluf, que a seguir seria derrotado por
Marta Suplicy, passou ao segundo turno com uma ínfima vantagem de votos sobre o
tucano. Quatro meses depois, no dia 6 de março de 2001, Covas morreu de
complicações de um câncer, e Alckmin, aos 48 anos, tornou-se governador de São
Paulo.
Os covistas não engoliram
“Geraldinho” no início. O novo ocupante do Palácio dos Bandeirantes era visto
como um político menor, a cara de Pinda – como todos se referem a
Pindamonhangaba. Em 2002, apesar das desconfianças, Alckmin disputou a
reeleição e venceu. Mais à vontade com o próprio mandato, livrou-se de
representantes do Ancien
Régime. “Ele não tem turma. É
superelegante, faz elogios, mas ele não te abraça, mantém uma distância. É uma
fraqueza dele. Ele não consegue dar intimidade”, avaliou Zuzinha, sorridente,
com o rosto rechonchudo e os cabelos penteados para trás, da mesma maneira que
o pai.
Quando cumprimenta as pessoas com um
abraço ou aperto de mãos, Alckmin inclina o tronco em direção ao interlocutor,
como na tradição oriental, mantendo plantada no chão a base dos pés, com as
pontas voltadas para fora, de modo que metade de seu corpo nunca se aproxima da
pessoa.
Instado a falar sobre suas amizades,
o governador discorreu genericamente sobre amigos de Pinda e familiares. Citou
apenas um nome, o do discretíssimo assessor especial Orlando de Assis Baptista
Neto. Orlandinho, como é chamado o advogado de Caçapava, interior paulista,
trabalha com Alckmin há trinta anos. “É um servidor. O menino não tem carro, é
formado em direito pela Universidade de Brasília, ia fazer Itamaraty, fala três
línguas fluentemente”, destacou Alckmin, que preza o fato de o assessor andar
de metrô. Uma de suas missões é ler o Diário Oficial,
assinalar com caneta vermelha contratos que secretários firmam sem licitação e
levar ao chefe. Ele se recusou a conversar com a piauí.
Alckmin é invariavelmente apontado
como uma pessoa fria, característica quase sempre associada a sua formação de
anestesista. Costuma ser econômico ao emitir qualquer opinião, sobretudo quando
se vê diante de polêmicas. Nessas situações, o governador pressiona os lábios
com força, como se dramatizasse involuntariamente que não vai dizer o que está
pensando. Sua boca também assume com frequência o formato de meia-lua, numa
espécie de sorriso ao mesmo tempo teatral e reprimido. Além da expressão
labial, a tensão de Alckmin costuma se manifestar em crises de soluço ou no
aparelho digestivo. Neste ano, foi parar duas vezes no hospital, vítima de
problemas no intestino: durante a campanha e um mês após a eleição.
Obsessivamente didático, o governador
fala de maneira hiperarticulada, sempre se-pa-ran-doas sí-la-bas. Usa muito as mãos, seja para reforçar com mímica
o conteúdo do que diz (por exemplo, esticando o polegar e o indicador para
imitar uma pistola ao mencionar que a polícia está sendo reequipada), seja para
enumerar princípios de vida. “Acordar cedo, deixar a luz do sol entrar no
quarto, fazer exercícios físicos para liberar a serotonina, manter uma
alimentação balanceada”, diz pausadamente, apertando cada um dos dedos de uma
das mãos com o indicador e o polegar da outra ao ensinar o que se deve fazer
para evitar o estresse.
O interlocutor quase sempre é mantido
numa zona de conforto delimitada pela entonação do discurso, ao mesmo tempo que
é atraído por esses mantras que ele repete ou por histórias envolvendo “o
saudoso” Covas, o passado em Pinda, contos de Monteiro Lobato e nomes de
lugares bem decorados. “Bo-tu-ca-tu. Em indígena: bons ares”, disse-me durante
um ato de campanha no interior. É comum vê-lo suprimir verbos das orações e
acelerar a última palavra para impor ritmo à sentença.
Também costuma fazer perguntas, a que
ele mesmo responde – um cacoete retórico dos tempos em que dava aulas de
química orgânica num cursinho para pagar a faculdade de medicina em Taubaté.
“Há uma lei da química: nada se cria, nada se perde, tudo se...? Trans-for-ma.
Então, esse é o rio Pinheiros, que vai desaguar na...? Billings. Na re-pre-sa
Billings”, repetiu, com um mapa na mão, ao anunciar a jornalistas medidas para
a crise de abastecimento de água, na Zona Sul da capital.
Alckmin ainda recorre a algumas
citações, que repete em diferentes situações. Uma delas ouvia do pai, que a
atribuía a santo Antônio de Pádua: “Se não puder falar bem, não fale nada.”
Vale-se também de Santo Agostinho: “Prefiro os que me criticam, porque me
corrigem, aos que me adulam, porque me corrompem.” E preza um conselho que diz
ser do presidente argentino Juan Domingo Perón à sua terceira mulher e
sucessora, Isabelita: “Fale muito das coisas, pouco das pessoas e nada sobre
você.”
Em
2006, ainda governador, lançou-se candidato a presidente, chocando-se com as
pretensões de José Serra, então prefeito de São Paulo. Ficou célebre a foto no
extinto restaurante Massimo – conhecido pela excelência da cozinha e pelo preço
extorsivo do cardápio –, onde Fernando Henrique Cardoso, Aécio e Serra se
reuniram durante um jantar e tomaram duas garrafas de vinho no valor de 600
reais, enquanto discutiam a candidatura tucana. Nesse mesmo momento, Alckmin
estava num rodízio de carnes de 15,90 reais, conversando com o baixo clero do
partido. Serra depois decidiria se lançar ao governo do estado, e Alckmin, sem
o respaldo do alto comando do tucanato, disputou o Planalto.
“Naquela eleição, nem Jesus Cristo
com Roberto Carlos de vice ganharia do Lula”, disse o senador Aloysio Nunes
Ferreira, do PSDB paulista, em julho, numa conversa no comitê de Aécio, em São
Paulo, de quem foi candidato a vice. Em Minas, Aécio tentava a reeleição e
divulgava oficiosamente a chapa “Lulécio”, fazendo de tudo para descolar sua
imagem de Alckmin. Eleito governador no primeiro turno, Serra viajou para o
exterior, ignorando o colega de partido.
Enredado pela campanha do PT, que o
acusava de defender a desestatização de tudo no país, Alckmin passou
praticamente todo o segundo turno tentando se desvencilhar da pecha de
privatizador contumaz, submetendo-se a posar diante das câmeras com um
bonezinho do Banco do Brasil e uma jaqueta com logomarcas da Petrobras, da
Caixa Econômica Federal e dos Correios. Conseguiu uma façanha: terminou a
campanha com 2,4 milhões de votos a menos do que teve no primeiro turno.
Derrotado de forma humilhante e abandonado, tentou ser presidente do PSDB.
Serra e Aécio o impediram.
Em meados de setembro, num domingo,
quase oito da manhã, Alckmin apareceu na porta da ala residencial no Palácio
dos Bandeirantes. Tinha a voz um pouco rouca, de quem havia acabado de acordar,
e vestia uma camisa branca com as mangas já arregaçadas. Encaminhou-se para a
sala de jantar, adornada com pratos de porcelana, lustre e tapete oriental, e sentou
numa das cadeiras de veludo bege, onde está bordado um brasão do estado.
Iniciou o dia com chá.
A duas semanas da eleição, a agenda
de campanha começaria em uma hora, e ao longo do dia o candidato tomaria em
torno de dezoito cafés. “Café que não se deve tomar demais é o expresso”,
comentou. Alckmin usa os cafezinhos para se aproximar do eleitor, assim como a
paradinha para fotos, que sempre assente com um simpático “opa” ou um animado
“claro, querida”.
No carro, a caminho da Zona Leste,
perguntei a ele o que acha de Lula. “O Lula é o showman, né? É o encantador.” Gosta do petista? “Não, eu o
respeito, acho que ele é uma pessoa inteligente. O cara tem méritos, até a
perseverança dele, foi cinco vezes candidato a presidente. Mas é um estilo de
política que não me agrada. O PT é difícil. Eu nunca fui próximo do PT. Você
tem uma ala em que é inacreditável a falta de limites. Mas tem bons quadros,
como todos os partidos.” Alckmin estava sentado no banco da frente, ao lado do
motorista. Não anda de carro blindado e diminuiu a segurança pessoal, na
contramão de Serra. Alega que isso pode pegar mal perante a população. Sobre
Dilma, foi mais elogioso: disse querer manter uma relação “pro-fí-cua,
pro-fí-cua” com a presidente, que “sempre agiu de maneira correta”.
Após perder a eleição presidencial, o
tucano resolveu se candidatar a prefeito em 2008. Mais uma vez se chocava com
José Serra, que apoiava a reeleição de Gilberto Kassab, então na prefeitura.
“Foi um problema, porque o PSDB vinha participando com o Kassab no governo.
Toda a prefeitura era nossa. Como você vai virar oposição?”, perguntou o
ex-governador Alberto Goldman, velho aliado de Serra, em sua sala no comitê de
Aécio, em agosto. “Estive várias vezes com o Alckmin para tentar demovê-lo. Ele
dizia que gostaria de ser prefeito, porque o prefeito está mais próximo do
povo. Eu, o Aloysio e o Serra chegamos a dizer que ele poderia ser o candidato
ao governo do estado. Mas ele manteve a posição. E aí não teve jeito.”
Boicotado pela máquina tucana controlada por Serra, Alckmin sequer passou para
o segundo turno. Saiu da campanha com a imagem de Quixote.
No final de 2009, Serra era
governador e se preparava para disputar a Presidência. “As pesquisas davam o
Alckmin como o mais popular, o favorito para disputar o governo do estado. E
num determinado momento o Serra consultou a mim e ao Goldman sobre o que
achávamos de trazê-lo para o governo. Ele achava importante para unificar o
partido”, lembrou Aloysio Nunes. Vivendo então seu ostracismo, Alckmin dava
palestras e aplicava sessões de acupuntura num hospital público. Aceitou na
hora o convite para ser secretário de Desenvolvimento Econômico. Aproveitou
para viajar pelo interior e inaugurar o que tinha pela frente. Preparou sua
volta e, no ano seguinte, elegeu-se governador, no primeiro turno, com 11,5
milhões de votos.
A assinatura
de Alckmin consta em sétimo lugar na fundação do PSDB, ao qual ele gosta de se
referir como “a social-democracia brasileira”. Mas, num partido em que os
dirigentes contam histórias do exílio no Chile e em Paris e gostam de flertar
com hábitos e representantes do topo da pirâmide social do país, Alckmin é tido
como um redneck. Não bebe, não fuma, não fala francês. FHC e Serra
sempre viram nele um político provinciano, de horizonte acanhado, que cultiva
valores paroquiais e está à direita do que, em tese, estariam os ideais do
partido.
No palácio, Alckmin tem como
secretário particular um integrante do Movimento Endireita Brasil, e um dos
colaboradores mais prestigiados é o polêmico promotor Saulo de Castro Abreu
Filho, que ocupa a Casa Civil. Ex-secretário de Segurança Pública, Abreu
coleciona no currículo troféus como a Operação Castelinho, que resultou na
execução pela polícia de doze supostos integrantes do Primeiro Comando da Capital
(PCC), em 2002. Socialmente, o governador convive com João Doria Júnior,
empresário e apresentador de tevê apelidado de “Riquinho”, que em 2007 fundou o
movimento “Cansei”. A família de Alckmin é de políticos da União Democrática
Nacional (UDN), partido formado em 1945 em oposição ao populismo getulista e
com forte vocação moralista. Os irmãos do seu pai foram eleitos prefeito e
vereador em cidades do interior pelo partido conservador.
Quando o questionei sobre a fama,
Alckmin repetiu o conselho de Perón a Isabelita a respeito da discrição. E
acrescentou: “Então, eu não sou uma pessoa autocentrada, de ficar falando de
mim. Agora, é só você verificar.” Passou a enumerar da participação no
diretório acadêmico da universidade, “ligado à esquerda”, à eleição como
vereador e prefeito de Pinda, nos anos 70, pelo MDB, que fazia oposição ao
regime militar, e sobre o qual sempre se refere como a turma do “Manda Brasa”.
“Agora, o que eu não sou é elitista.”
Defendeu que seus governos promoveram
o que chama de “atitudes de vanguarda”, como a lei de combate ao trabalho
escravo, de 2013. Foi até sua mesa de trabalho e exibiu a cópia da lei de
combate à homofobia, que estava devidamente grifada e já posicionada à sua
espera – a lei foi promulgada por ele, em 2001, após proposta do deputado
petista Renato Simões. O tucano aceita o aborto apenas nos casos previstos em
lei e se coloca contra a descriminalização do uso das drogas, embora diga que
está aberto para o debate. Ao ser indagado se já experimentou maconha,
respondeu que nem cigarro normal ele tragou: “Eu tentei fumar um cigarro, mas
não entrou, não passou.”
O desprezo pelo elitismo, de que se
orgulha, também assume a forma de certo desdém pela academia. Alckmin se refere
com ironia a “esse pessoal da Brown”, uma das mais prestigiadas universidades
americanas, onde FHC lecionou.
O vínculo do governador com o
universo intelectual se exprime na admiração pelo deputado federal Gabriel
Chalita, ex-secretário da Educação do governador. Doutor em filosofia do
direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de mais de
sessenta livros – entre os quais Seis Lições de Solidariedade, escrito em parceria com a primeira-dama, a partir
de diários de Dona Lu –, Chalita exaltou a curiosidade cultural de Alckmin:
“Ele gosta de teatro, de cinema. Foi ver o Juca [de Oliveira] no Rei Lear.
Adora. Aí, ele começa a ler um pouco mais de Shakespeare porque acha que a
atualidade daquilo é muito legal. Mas ele não foi estudar fora, fazer uma
carreira acadêmica. Ele fez uma opção de vida, é um homem que se dedicou à
política”, contou o deputado, hoje no PMDB, durante um almoço num bistrô em
Higienópolis, na Zona Oeste de São Paulo, onde mora.
Os dois se conheceram quando Chalita
era vereador numa cidade do Vale do Paraíba. “Alckmin começou a ir a todas as
cidades do fundo do Vale para fundar o PSDB, e nós íamos junto. E era muito
legal porque ele pedia para eu contar sobre um filósofo. Aí a gente ficava a
viagem falando. E é engraçado porque ele sempre foi muito metódico. Dizia: ‘Que
ano nasceu Platão? Como chamava a mãe dele, o pai dele?’”
“Ele começou no Monteiro Lobato e
parou por lá. Nunca mais leu nada”, atacou um ex-governador, que pediu
anonimato. É comum dirigentes tucanos o diminuírem dizendo que ele não fala
inglês. O tucano morou cinco meses em Harvard, em 2007, depois que perdeu
a eleição, onde fez um curso de políticas públicas, e teve logo a seguir um
professor particular. Alckmin aproveitava para ouvir as aulas no som do carro,
entre compromissos. Agora, diz que mantém o inglês lendo revistas. Num evento
em agosto, ao falar das estâncias turísticas do estado, mencionou a prática
de rafting, descida de bote em correntezas: “Em Brotas
tem réf-tim. Lá em Pindamonhangaba é rala-bunda mesmo. Pessoal chique é outra coisa.”
Ele diz que leu “quase tudo” de
Machado de Assis, Eça de Queiroz (A Cidade e as Serras), Dostoiévski (Crime e Castigo)
e “tudo” de Monteiro Lobato. Em tom solene, narra de cabeça um trecho
intrincado de “A vingança da peroba”, conto de Lobato. “Mas eu gosto do Fabio
Feldmann [ex-deputado]. Ele pega aqueles livros de 300, 400 páginas, e
já manda grifado. Pô, para você pegar um livro de 400 páginas, precisa tirar
férias”, disse, ao comentar que vai direto para as partes assinaladas pelo
colega.
Toda noite, Alckmin se dedica às
palavras cruzadas e ao passatempo japonês Sudoku – deste último, só o nível
difícil ou diabólico. Durante uma visita a uma represa do Cantareira, no final
de agosto, pediu um jornal para mostrar a uma roda de jornalistas e de
engenheiros da Sabesp qual a melhor maneira de fazer o jogo. “Você tem que
dobrar, dar a batidinha, dobrar de novo. Aí, vira aqui e com a caneta faz”,
explicou, com o jornal dobrado em quatro partes. Depois, contou que havia
protestado com a direção do Estadão sobre
o tamanho do jogo. “Não pode esse negócio. Tá muito miudinho.”
A maior
referência na vida de Alckmin é seu pai. Geraldo José Rodrigues Alckmin era
veterinário, ex-seminarista e integrante da Terceira Ordem de São Francisco.
Trabalhou como chefe de gabinete na Secretaria de Agricultura no governo Jânio
Quadros e como chefe de gabinete do próprio Alckmin, em Pindamonhangaba. “Um
santo, impressionante”, falou durante o café da manhã no palácio. Colocou a mão
no bolso direito da calça, de onde retirou um velho terço de madeira. “Este
terço meu pai rezou a vida inteira. Ando com ele todo dia.” O terço lhe foi
dado por um sobrinho, que o encontrou nas coisas do avô após ele morrer, em
1998. Era a segunda vez que Alckmin me contava a mesma história, repetindo o
mesmo ritual de retirar o terço do bolso direito. A primeira havia ocorrido
semanas antes, em Botucatu.
“Mamãe morreu em 1963. Papai foi pai,
mãe, padrinho e parteiro.” Ele tinha 9 anos quando Myriam Penteado Rodrigues
Alckmin morreu de complicações decorrentes de uma bronquite asmática. Para
criá-lo, Geraldo pai contou com a ajuda das duas filhas mais velhas, Maria
Isabel, a Bebé, e Maria Aparecida, a Mimi, e da babá Terezinha dos Santos, a
Nhá, com a família até hoje. Para o pai e para as irmãs, Alckmin é o “Paiau”,
uma tentativa de Mimi reproduzir o vocativo “palhacinho da mamãe”, cunhado por
Myriam. A família viveu dezessete anos num sítio em Pinda, onde funcionava uma
fazenda experimental do governo para a qual o pai, especialista em
piscicultura, foi nomeado responsável.
“Meu pai era muito religioso, todo
dia a gente tinha que rezar o terço, cada um rezava um mistério. Todo domingo
era missa. Meu pai falava: ‘Não vou deixar dinheiro para vocês, mas uma
formação religiosa eu vou deixar.’ A gente rezou demais nessa vida”, disse Mimi
em sua casa em Pinda, uma construção típica de classe média do interior
paulista, com varanda e um pequeno jardim na frente. Com 64 anos, falante e
sorridente, vestindo uma blusa florida, Mimi me recebeu para um café com a irmã
mais velha, Bebé, de 67 anos, no dia 13 de agosto, data do acidente aéreo que
matou Eduardo Campos. “Meu irmão acabou de aparecer na televisão”, comentou.
Num aparador, sob a luz fria da sala, o adesivo “Aécio 45”. Bem mais loquaz que
Geraldo, Mimi tem os cabelos curtos e claros, assim como os olhos, que puxou da
mãe e da avó paterna, Ida Ravache, descendente de alemães. A atriz Irene
Ravache é prima dos filhos do seu Geraldo. O governador diz que essa é a “parte
bonita da família” e, ao olhar para o secretário Marcio Aith, que acompanhava
nosso café da manhã no Palácio, disse que as sobrinhas “são de parar o
trânsito”.
Enquanto comia um pedaço de pão com
queijo, o governador citou de cabeça, um por um, todos os mistérios do terço.
Começou pelos cinco “gozosos”, que eram rezados às segundas-feiras, e depois
partiu para os “dolorosos”, momento em que Aith o interrompeu: “Pra que passar
para esses, governador? Melhor ficar nos gozosos.” Alckmin fingiu que não ouviu
e seguiu a explanação até chegar aos mistérios “gloriosos” e “luminosos”,
quando levantou os braços para falar da “res-sur-rei-ção do Nosso Senhor”.
Ele vai à missa quase todo domingo e
tenta confessar quando tem tempo. Em 2003, sofreu um baque quando o filho mais
novo, Thomaz, então com 20 anos, engravidou a namorada, uma funcionária do
cerimonial do Palácio. Há alguns anos, a mãe da primeira neta do governador
processou Thomaz, piloto de helicóptero, por causa dos valores da pensão. Hoje,
mãe e filha moram na Noruega.
Depois do café, Alckmin me levou até
seu gabinete para que eu visse a cópia de uma carta que o pai lhe escreveu em
1981, quando, com Dona Lu, ele participava de um Encontro de Casais com Cristo. Tirou as três páginas da “cartinha” da primeira
gaveta de um móvel de madeira, que faz a função de baú – lá estão guardados
desde o santinho da campanha a prefeito de Pinda, ao lado do candidato a
vereador Nelson do Esgoto, até o caderno no qual constam todas as anestesias
que já aplicou, a primeira em 3 de abril de 1979, numa cirurgia de
hernioplastia inguinal. “Os católicos não nascem, fazem-se. É uma escalada
difícil”, lê o trecho no mesmo tom grave empregado ao narrar o conto de Lobato.
Em novembro, na segunda conversa que tivemos em seu gabinete, Alckmin voltou a
pegar a carta. Desta vez, porém, leu-a na íntegra, durante seis minutos e 35
segundos.
As irmãs dizem que, além da fé, o
tucano herdou do pai um comportamento franciscano, característica que ele faz
questão de divulgar. “Vestir as sandálias da humildade” é um de seus bordões,
ao lado de outros que remetem à vida laboriosa, como “amassar barro” e “comer
poeira”. Alckmin dedica-se com esmero a pequenas economias do dia a dia do
palácio. Determinou que se use também o verso do papel no qual é impressa sua
agenda e mandou cortar dos eventos sucos e salgadinhos fornecidos pelo
cerimonial. Ficou horrorizado com a champanhe Taittinger servida em uma agenda
oficial pelo governo de Minas. Há dois anos foi visitar o filho Geraldinho que
vivia no México. Comprou bilhetes de classe econômica. Quando roubaram o Rolex
de um familiar, Alckmin buscou em suas gavetas um relógio de plástico, do Bom
Prato – programa do governo que vende comida a 1 real – e o deu ao parente,
como consolação.
Quando eu quis saber qual fora sua
maior extravagância financeira, ele não soube responder. Disse que “só gasta
dinheiro fácil quem ganha dinheiro fácil”, e frisou que vive de salário – seus
vencimentos líquidos, em outubro, foram de 15 455,99 reais. Uma revista
publicou que ele teria dado 10 reais de gorjeta a um engraxate. “Pô,
avacalharam a minha boa fama!”, retrucou, negando peremptoriamente que os 10
reais fossem gorjeta. O dinheiro, explicou, era para remunerar o serviço e a
graxa, uma vez que o dono do local não quis lhe cobrar nada.
Após
um compromisso de campanha, no final de julho, Alckmin resolveu tomar um café
no Centro de Artur Alvim, bairro da Zona Leste. Parou no boteco escuro de um
chinês. O deputado José Aníbal, vendo uma padaria grande e iluminada do outro
lado da rua, insistiu para que fossem para lá: “Tem um empadão...” O governador
olhou para mim e cochichou: “Geraldo Alckmin, o único tucano franciscano.”
Terminou o café, pagou o chinês e foi para o outro lado da rua. Na padaria,
pediu “metade” de um café. “Zé, aqui é mais caro, é por sua conta. Meu pai
dizia o seguinte: ‘Paga mais quem ganha mais.’ O meu é o de lá. Este aqui é
dessa turma de Higienópolis”, disse em referência ao bairro, um dos mais
valorizados da capital, onde mora Aníbal.
Mimi cita um padre de Taubaté para
falar sobre o irmão. “Geraldinho não vai a nada, não aproveita nada. O padre
Marquinho é engraçado, ele fala: ‘Eu é que tinha que ser governador, seu irmão
tinha que ser padre.’” Alckmin tem um patrimônio declarado de pouco mais de 1
milhão de reais: um apartamento próximo ao palácio, um carro, aplicações
financeiras e um sítio em Pinda, onde pernoita uma vez por mês.
A despeito da devoção a são Francisco
de Assis, em 2012 ele fez uso do helicóptero do governo para fugir do trânsito
paulistano e buscar o filho e os netos que desembarcavam do México no Aeroporto
de Guarulhos. Dona Lu recebeu mais de 400 peças de roupa, principalmente
vestidos, de presente de um estilista. Quando o tema veio a público, em 2006,
ela disse que eram apenas quarenta vestidos e os doou. A filha Sophia mantém um
blog de moda onde publica fotos de bolsas, sapatos e joias de marcas de luxo,
com as quais mantém relações profissionais. Algumas das fotos são ambientadas
nos jardins do palácio.
A religiosidade da família Alckmin
tem como origem a avó Ida Ravache. Devota de são Geraldo Magela, adotou Geraldo
para o nome de dois dos cinco filhos: o pai de Alckmin, Geraldo José, e o
caçula, José Geraldo, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal, designado
pelo regime militar. José Geraldo foi também um influente integrante da Opus
Dei, movimento conservador da Igreja Católica, criado em 1928.
O fundador da Opus Dei, o padre
espanhol José María Escrivá, foi acusado de admirar Hitler e o general espanhol
Francisco Franco (dois opositores do “ateísmo comunista”), de ter colaborado
com o regime franquista e de ter posto em dúvida o genocídio dos judeus pelo
nazismo. Escrivá foi canonizado em 2002 pelo papa João Paulo II. Chamada de
Obra por seus integrantes, a prelazia prega a retidão moral e diz que é
possível alcançar a santidade aplicando no cotidiano os princípios cristãos. No
livro Opus
Dei: Os Bastidores, três ex-integrantes do grupo
relatam o uso de objetos em rituais de autoflagelação, métodos de lavagem
cerebral, incentivo à castidade e à misoginia.
O ramo da família Alckmin ligado a
José Geraldo, o tio Zeca, é da Opus Dei. Alckmin morou com o tio durante o
período que passou em São Paulo para fazer cursinho. Anos depois, em 1979,
quando prefeito de Pinda, prestou uma homenagem ao líder da Opus Dei e assinou
um decreto alterando o nome da antiga rua 13 da cidade para rua Monsenhor José
Maria Escrivá. Desde 1976, carrega na carteira um bilhete do pai com uma
passagem de O
Caminho, livro com ensinamentos do fundador
da Obra.
Quando deixou Pindamonhangaba para
morar em São Paulo, a prima Maria Lúcia, filha de Zeca, lhe indicou como confessor
o padre português José Teixeira, também da Opus Dei. Em 2005, Teixeira convidou
Alckmin para participar de grupos de estudo do Evangelho, formado por pessoas
ligadas à Obra. Algumas reuniões ocorreram na ala residencial do Palácio dos
Bandeirantes. “Fizemos três ou quatro círculos, muito bons. Não tem pauta. Você
pega um texto evangélico e comenta. E tira as conclusões do texto”, contou
Alckmin sobre os encontros.
Assim que as reuniões vieram à tona,
na campanha presidencial de 2006, ele parou de frequentar a turma. Hoje, diz
que tem apreço pela Obra. “Tenho grande admiração pela Opus Dei e respeito
imensamente quem faz parte dela. Tenho enorme respeito. Aliás, o monsenhor
Escrivá é santo da Igreja Católica”, observou.
As
relações de Alckmin com a Opus Dei são frequentemente evocadas por seus
críticos. Também já tentaram atacá-lo invocando a figura do “ladrão de casaca”,
protagonista do filme homônimo de Alfred Hitchcock, sobre um ex-ladrão de joias
suspeito de cometer crimes num balneário de luxo francês. Nas eleições para
prefeito, em 2000, Paulo Maluf passou a disseminar uma história nebulosa,
segundo a qual “o professor favorito de Alckmin era o ‘ladrão de casaca’”.
Numa tarde de novembro, Maluf – que
apoiou o candidato Skaf, mas é aliado do governo Alckmin – recebeu a piauí em sua casa, no Jardim América. Sentado no sofá da
sala de estar, entre tapetes persas, porcelanas, quadros impressionistas,
estamparia floral e pot-pourris que deixam o ambiente com um cheiro adocicado,
Maluf falou sobre o governador. “Ele é um homem sério. Nunca foi envolvido em
nenhum escândalo.” Citou a seguir uma frase de Winston Churchill: There is no public opinion, there is
published opinion (Não há opinião
pública, há opinião publicada), enfatizando a letra “p” para forçar o sotaque
britânico. “Por isso se diz que em Minas não tem governador ruim, porque o
que O
Estado de Minas fala é bíblia. No news is good news. E o Alckmin é um pouco isso. Como não tem
escândalo, o governo dele é tido como sério, e é sério.” Indo além, o
ex-prefeito defendeu a candidatura de Alckmin à Presidência em 2018: “Ele teve
uma vitória eleitoral em São Paulo, enquanto o Aécio teve uma derrota eleitoral
em Minas. Ele é o candidato natural, pelo peso de São Paulo.”
E a história do “ladrão de casaca”?
“Não falo. Não falo. Isso é coisa pessoal. É vida pessoal. Você vai atrás das
minhas namoradas, também?”, perguntou, sorrindo, mas já levantando do sofá,
deixando claro que a entrevista havia terminado. “Julinha, sem ser neste
sábado, no outro, se quiser almoçar no Miski, é minha convidada”, disse,
mencionando o restaurante árabe. Caminhou até os jardins de sua casa, de onde
se despediu.
O “ladrão de casaca” é o advogado
Laurival de Moura Vieira Aquilino. Recebeu o apelido em reportagem da
revista Veja de setembro de 1983, que tratava de seu
envolvimento em oito assaltos à mão armada a mansões de São Paulo. Conhecido
como “Dr. Netto”, o advogado frequentava os salões da elite paulistana, dirigia
uma Mercedes e ia à Sociedade Hípica Paulista. Com base nas informações que
obtinha, inclusive de clientes da mãe, dona de uma loja de roupas no Itaim,
passou a organizar seus assaltos. “Ele era pobre, mas conseguiu se misturar.
Depois, o comparsa dele foi preso e falou que ele fornecia drogas”, afirmou o
ex-vereador Brasil Vita, um dos que tiveram a casa assaltada. “Mas não lembro
mais muita coisa. Fatos desagradáveis a gente esquece. E, se lembrasse, também
não falaria por questões de segurança”, declarou.
Com informações no submundo do
tráfico, Aquilino passou a ser informante da Polícia Federal e da DEA, a Drug
Enforcement Administration, agência americana de combate às drogas. Uma de suas
delações levou à prisão de duas pessoas e à apreensão de 1 quilo e meio de
cocaína no Aeroporto de Cumbica. Aquilino foi assassinado no dia 19 de janeiro
de 1990, no segundo subsolo do edifício Central Park, na rua Estela, 515, no
Paraíso, onde ficava seu escritório. No inquérito sobre sua morte, ao qual a piauí teve acesso, testemunhas apontam como autora do
disparo uma mulher que, abraçada a um ruivo, fugiu num Escort. Arquivou-se o
processo sem que o crime tenha sido solucionado, mas a crônica policial o
relata como um caso clássico de queima de arquivo por parte do submundo do
tráfico.
Aquilino foi o primeiro marido de Lu Alckmin,
com quem ela se casou em 1973, segundo registro no 24º Subdistrito de
Indianópolis, na capital. Lu tinha 22 anos e ficou casada por apenas oito
meses. Em 1976, já separada, conheceu Alckmin num baile em Pinda. Em março de
1979, depois da anulação da união anterior, casou com o tucano. Alckmin
considera “lamentável” a tentativa de exploração política do caso. “Essa é uma
questão pessoal da Lu. Nem sei quem é essa pessoa, nunca o vi na minha vida.
Aliás, ele já morreu. Foi declarada a nulidade do casamento. Se ela se casou
com uma pessoa equivocada, tanto foi equivocada que oito meses depois ela
separou. Quem era essa pessoa, nem sei. Nunca vi na vida”, disse Alckmin, ao
comentar o caso pela primeira vez, na entrevista em seu gabinete. A declaração de
que o “ladrão de casaca” seria o maior professor de Alckmin rendeu a Maluf
condenação na Justiça, num processo movido pelo governador.
Até
hoje Alckmin preserva costumes de político do interior. Sobre a mesa de
Rodrigues Alves, no gabinete, mantém quatro cadernos universitários, onde anota
dados das reuniões com secretários e aos quais recorre para checar informações.
Também tem o hábito de ligar para prefeitos, donos de postos de gasolina e
outras pessoas de sua rede de contatos pelo interior do estado. Um dos que
recebem telefonemas esporádicos é o tucano Acir Filló, prefeito de Ferraz de
Vasconcelos. É dele a biografia Geraldo Alckmin: o Menino, o Homem, o Político. “Em 2012, ele ligou lá em casa num domingo de
manhã. Fiquei tão encantado que poderia filmar o telefonema. Ele queria avisar
que viria à cidade comer um pastel”, disse o prefeito, em seu gabinete, um
prédio de estilo colonial na cidade de 182 mil habitantes, na Grande São Paulo.
O prefeito-biógrafo acha que o tucano
“nasceu virado pra lua”. “Não tem nenhum brasileiro na política, ou no mundo,
que tenha tanta sorte”, disse. “Sorte aliada ao trabalho”, logo emendou. Em
1976, Alckmin se tornou prefeito de Pinda com a bola raspando na trave: levou o
cargo por uma diferença de 67 votos. Eleito para quatro anos, ficou seis,
beneficiado pela lei que estendia os mandatos até a eleição de 1982. Naquele
ano, instado por Montoro, acabou se candidatando a deputado estadual. O próprio
tucano avalia que, se tivesse saído da prefeitura em 1980, provavelmente teria
se voltado à medicina.
A sorte também o favoreceu no
episódio do sequestro envolvendo a família de Silvio Santos, em 2001. O bandido,
que dias antes havia sequestrado a filha do apresentador, num enredo
cinematográfico, invadiu a residência do dono do SBT e, mantendo-o como refém,
exigiu a presença do governador. Um inexperiente Alckmin, com cinco meses de
governo, cedeu à chantagem. Entrou sozinho na casa, onde encontrou o
sequestrador de arma na mão. Deu-lhe garantia de vida, caso se entregasse.
Quatro meses depois, o criminoso morreu na prisão. Toda a ação foi considerada
desastrosa pela imprensa, mas o recém-empossado passou a ser conhecido como “o
homem que salvou o Silvio”. Era saudado nas ruas por onde passasse.
Ao comentar sobre o papel da sorte em
sua trajetória, Alckmin novamente recorreu à mesa de Rodrigues Alves, de onde
trouxe uma edição do livro Rompendo o Cerco,
de Ulysses Guimarães, amarelada e marcada nas laterais. “Eu nunca tive
pretensão de fazer política. Nunca. Minha ideia era sempre a medicina e Pinda.
Eu gostava de Pinda”, disse, enquanto procurava um trecho do livro. Quando o
encontrou, partiu para a leitura em voz alta, sempre em tom solene. Segurou o
livro com a mão esquerda, enquanto a direita regia a leitura, movimentando-se
no ar: “Ao político azarado chove no dia do seu comício e dá defeito no
microfone na hora que vai falar (...) Napoleão, antes de entregar o bastão de
marechal a um de seus generais, investigava se ele tinha sorte.” Contei-lhe que
havia lido sua biografia, e ele disse não gostar de ser o personagem central do
livro. Citou mais uma vez o conselho de Perón a Isabelita. “É o contrário do
Serra, que é muito auto...” Autorreferente?, perguntei. Ele seguiu recitando a
frase de Perón, sem concordar nem discordar.
O ex-secretário
de Segurança Pública Antonio Ferreira Pinto considera Alckmin um governador
“frouxo” e “titubeante”. “Ele decide basicamente por decurso de prazo. Se
preocupa muito em não passar uma imagem repressora. Acaba abrindo mão da
autoridade e daí ocorrem excessos ou omissões”, disse Ferreira Pinto, hoje
procurador de Justiça aposentado, enquanto fumava um charuto na varanda deum restaurante
na Zona Sul da capital.
Ele ocupou o cargo durante três anos
e nove meses, nos governos Serra e Alckmin. Enfrentou de maneira inédita a
corrupção na Polícia Civil e acabou demitido por Alckmin em 2012, após uma
série de desgastes. Seu estilo intempestivo afligia o governador. Ao contrário
de Saulo Abreu, Ferreira Pinto não tinha a total confiança do chefe.
Durante nossa conversa, o
ex-secretário disse mais de uma vez que o estado “glamoriza” o poder do
Primeiro Comando da Capital, o PCC. Para ele, o governo anuncia enfrentar a
facção para tirar dividendos políticos e criar uma cortina de fumaça sobre o
aumento da criminalidade em outras áreas, como os roubos. Ferreira Pinto deu um
exemplo do que vê como manipulação da opinião pública: em 2013, o Estadão divulgou uma escuta telefônica obtida pela polícia
quase dois anos antes, na qual um preso ameaçava de morte o governador. “Era
uma escuta gravada em 2011, aquilo não merecia nenhuma consideração, eu nem
levei o caso ao governador. Quando veio à tona, em vez de o Alckmin dizer que
aquilo era uma paspalhice, porque a informação estava isolada do contexto da
facção criminosa, ele disse que não iria se intimidar, como se tivesse sendo
rigoroso no combate à facção, e a facção quisesse efetuar uma represália.” O
ex-secretário dava leves socos na mesa nos momentos mais exaltados, enquanto
falava.
Entidades de defesa dos direitos
humanos criticam a atuação da polícia de Alckmin em episódios como a Operação
da Cracolândia, em repressão a traficantes e usuários de drogas, e a
reintegração de posse em Pinheirinho, quando a Polícia Militar usou a força na
retirada de milhares de famílias de um terreno no interior para cumprir uma
decisão judicial. As pesquisas do governo nesses dois episódios, e não só
neles, apontaram que uma ampla maioria da população respaldava o comportamento
da polícia. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entidade que agrega
especialistas e organizações não governamentais, como o Instituto Sou da Paz,
diz que, depois da polícia fluminense, a Polícia Militar paulista é a que mais
mata no país. As vítimas, quase invariavelmente, são negros e moradores da
periferia.
A taxa de homicídio em São Paulo,
índice mais usado para medir a violência, parou de cair desde que Alckmin
recebeu o governo de Serra. Estacionou na faixa de 10,5 assassinatos para cada
100 mil habitantes. Em 2001, porém, quando Alckmin assumiu o governo pela
primeira vez, a taxa era muito mais alta: 33,3 homicídios para cada 100 mil. O
índice hoje está entre os menores do país. O governador alega que é difícil
romper a barreira de um dígito e disse que essa é sua meta para os próximos
quatro anos. Na campanha, uma das suas principais propostas era aumentar de
três para oito anos o prazo de internação de menores que cometeram crimes
hediondos. “A lei atual é frouxa”, disse Alckmin, na tevê. Em 2012, após uma
operação da polícia no interior do Estado que culminou na execução de nove
membros do PCC, ele justificou o saldo da ação com o seguinte comentário: “Quem
não reagiu está vivo.” Entre os ativistas dos direitos humanos a declaração foi
carimbada como a versão tucana do “bandido bom é bandido morto”, associada ao
malufismo.
Na
Serra da Mantiqueira, a pouco mais de 60 quilômetros de São Paulo, fica a
represa de Atibainha. Segunda maior do Sistema Cantareira, com capacidade de
armazenamento de 200 bilhões de litros, ela integra um cenário quase edênico,
com suas águas verde-escuras circundadas pela mata. No final da manhã do dia 21
de agosto, porém, uma grossa faixa de terra seca e vermelha, entre a água e a
vegetação, arruinava a paisagem. A temperatura acima dos 25°C, a umidade
relativa do ar a 39% e um céu azul, sem sinal de nuvens, davam a impressão de
que estávamos às margens do rio São Francisco, no Nordeste.
Dez minutos antes do meio-dia, o
carro preto de Alckmin surgiu em uma estreita estrada de terra, levantando
poeira e agravando a sensação de aridez. O governador inspecionou as doze
bombas instaladas para captar 77 bilhões de litros do volume morto, água que
fica abaixo das comportas da represa e que precisa de máquinas para ser jogada
na tubulação. Enquanto observava o equipamento, posava para fotos, usando um
capacete de plástico com o logotipo da Sabesp. Depois, atrás de um púlpito e
com as bombas às suas costas, falou para as câmeras de tevê. Descartou o
racionamento e garantiu que não faltaria água até o final do ano, mesmo se não
chovesse. “Mas é evidente que tem chuva”, disse.
“Desde janeiro eu venho falando que
precisaria ter decretado o estado de emergência, ter sido feito o racionamento.
Hoje, estamos numa situação mais crítica”, disse o engenheiro civil e professor
Antonio Carlos Zuffo, com pós-doutorado em engenharia hidráulica e saneamento.
De sua pequena sala na Unicamp, três horas depois da inspeção de Alckmin em
Atibainha, Zuffo vaticinou: “Tem que conscientizar a população de que o
problema é sério. Quando se nega, as pessoas falam: ‘Então vou continuar minha
vida normal.’ E continuam abusando, comprando caixa-d’água maior. Agora, se ele
falar ‘Existe o problema de água e corremos o risco de desabastecimento’, ele
pode perder voto. Então, ele está jogando com a sorte.”
Nelson Biondi, o marqueteiro, conta
que durante toda a campanha “tinha um fantasma rondando, que era a porra da
água”. “E nós não fizemos um comentário na campanha inteira”, ele lembrou,
recebendo como apoio moral um “graças a Deus”, dito por um integrante da sua
equipe que acompanhava a entrevista. O tema só foi tratado diretamente por
Alckmin no penúltimo programa na tevê. “Não houve tempo de os adversários
explorarem”, disse Biondi, com o colega repetindo: “Graças a Deus, graças a
Deus.”
A presidente da Sabesp, Dilma Pena,
está mais para Zuffo do que para Biondi. Em uma reunião da empresa neste ano,
cujo áudio vazou para a imprensa, ela afirmou ser um “erro” a Sabesp estar tão
pouco na mídia para falar da escassez hídrica. Resignada, disse que a
“orientação superior” era aquela. Em 2014, as campanhas publicitárias da Sabesp
foram tímidas, e o logotipo do governo do estado, que acompanhava as peças,
sumiu, numa tentativa de desvincular o Palácio da crise. Eufemismos dominaram a
retórica governista: volume morto era “reserva técnica”; corte no fornecimento
de água, “diminuição na pressão”. Em janeiro, técnicos da Sabesp propuseram um
rodízio. Em julho, o Ministério Público Federal recomendou o racionamento.
O governo paulista não adotou nenhuma
das ideias. Alckmin, que repetiu incansavelmente que o estado passava “pela
maior seca dos últimos 84 anos”, preferiu medidas alternativas, como o bônus
para quem economizasse e obras em outros sistemas para diminuir a dependência
do Cantareira. Com os reservatórios em queda, em novembro o governo teve que apelar
para a segunda cota do volume morto. A crise é considerada gravíssima, com
potencial de comprometer o futuro político de Alckmin. A falta de água já
atinge todas as regiões da capital e diversas cidades no interior do estado. A
aquisição de caixas-d’água maiores e o recurso a caminhões-pipa e baldes
tornaram-se rotina entre os paulistas. Mal encerrada a eleição, Dilma Pena
correu para o Palácio e demitiu-se. Ou melhor, usando um eufemismo, “colocou o
cargo à disposição”.
“Na verdade, a culpa não é de são
Pedro. Não havia estudos dizendo que choveria. Era um desejo de que chovesse,
um devaneio”, declarou a procuradora Sandra Kishi, de tailleur e sandálias de salto alto, o cabelo escuro longo e
solto, as unhas pintadas de rosa alaranjado. Ela organizou um seminário
internacional para debater a crise de água no começo de novembro, mas as
principais autoridades do estado, convidadas para falar sobre a questão, não
foram.
Em 2004, Sandra, responsável pela
área de abastecimento de água no Ministério Público Federal em São Paulo,
acompanhou a elaboração de medidas que deveriam ser tomadas para combater a
seca daquele ano, entre elas a adoção de um modelo que estipulava a quantidade
de água a ser retirada de acordo com o nível do reservatório. “É como um depósito
de suprimentos. Esse depósito deveria durar x, desde que o limite fosse
respeitado. Não durou metade de x”, exemplificou. “Parou de chover, mas a
retirada continuou acima da capacidade de regularização. O reservatório secou
em dois anos. Teria que ter diminuído a vazão, depois que parou a chuva”,
declarou Zuffo, na mesma linha. A Sabesp vive da venda de água, o que lhe
rendeu um lucro de 1,9 bilhão de reais em 2013. Quanto mais água vende, maior
sua receita. É um raciocínio tão simples quanto perverso, pois a empresa que
deveria zelar por um produto escasso é a mesma que lucra com sua venda.
Num
dia da primeira semana de novembro, pouco depois das 11 horas, o carro preto de
Alckmin chegou a uma estação de tratamento de água em Santo Amaro, Zona Sul da
capital. No local, seguiu um script parecido com o da visita à Atibainha, dois
meses antes. Acompanhado novamente por fotógrafos e emissoras de tevê, e com o
capacete da Sabesp, ele inspecionou dois reservatórios, dentro de uma área de
60 mil metros quadrados. Havia, porém, uma diferença no cenário: a chuva.
“Graças a Deus”, comentou Alckmin, embaixo de um guarda-chuva empunhado por
Paulo Massato Yoshimoto, diretor para a região metropolitana da empresa.
Depois da entrevista coletiva, duas
paradas para cafezinhos e fotos com funcionários, Alckmin já se preparava para
partir quando encostou numa roda de técnicos da Sabesp. Começou a falar de
“José Bento Monteiro Lobato, o grande escritor” e mencionou, então, o trecho de
“A vingança da peroba”, o mesmo que repetiria no encontro em seu gabinete,
semanas depois. Ao terminar, recebeu aplausos entusiasmados. “Aêêê,
governador”, gritou um funcionário.
O engenheiro civil Paulo Massato
Yoshimoto é um homem alto, com o cabelo liso e escuro repartido de lado. Tem a
voz rascante de quem fuma, está sempre de óculos escuros com lentes
fotossensíveis e crachá no pescoço. Parece ter saído de uma foto da Sabesp dos
anos 70. É a maior referência sobre o tema no governo paulista, uma espécie de
presidente de fato da empresa.
Durante a visita à estação de
tratamento, perguntei-lhe sobre a suspeita de que a Sabesp teria retirado do
Cantareira mais água do que poderia. Massato afirmou que a empresa seguiu o
planejamento de retirada normal até dezembro de 2013, porque havia “previsão de
chuva”. “Em dezembro falou-se ‘Opa, não está chovendo’. Aí começamos a tomar as
providências para em fevereiro estar reduzindo.” No áudio vazado da reunião da
Sabesp, cuja data, neste ano, ninguém soube precisar, Massato foi catastrófico:
“Saiam de São Paulo, porque aqui não tem água, não vai ter água pra banho, pra
limpeza da casa. Quem puder compra garrafa, água mineral. Quem não puder, vai
tomar banho na casa da mãe lá em Santos, Ubatuba, sei lá.”
Batendo de frente com a Sabesp está o
engenheiro Mauro Arce. Aos 73 anos, coleciona um recorde na burocracia tucana:
trabalhou com todos os governadores desde Mário Covas. Foi secretário de
Energia, Recursos Hídricos e Saneamento, dos Transportes e, agora, de
Abastecimento e Recursos Hídricos, cargo que acumula com a presidência do
Conselho de Administração da Sabesp. Em março, já em meio à crise hídrica, Arce
estava no hospital colocando um marca-passo quando recebeu um telefonema de
Alckmin, que o convidava para substituir o então secretário, um deputado
estadual da cota do Partido Verde (PV).
“Nós somos um povo latino, queremos
que o governo resolva tudo”, afirmou Arce, da sua sala de reuniões, no 14º
andar da secretaria, num prédio próximo à Paulista, em setembro. Ele faz coro a
Alckmin e descarta o racionamento, que considera “o menos racional” dos meios
de economizar água. “Você comete uma violência, fecha a rede, não permite que
as pessoas tomem uma decisão. Quem vai guardar água? As pessoas vão encher a
banheira.”
Questionado sobre um “racionamento
branco” em São Paulo, escamoteado por causa da eleição, respondeu: “Não tinha
eleição aqui, todo mundo reclamava que não tinha eleição. Agora tem eleição,
todo mundo reclama que você está se comportando de acordo com a eleição.”
Segurava o cinto com as duas mãos, enquanto falava esparramado na cadeira.
“Temos uma situação de escassez, mas as pessoas estão economizando e estamos
conseguindo superar. Vamos começar agora a melhor estação. Nessas estatísticas
de 84 anos, temos muito julho que não choveu, mas setembro, muito raro.” Na
verdade, em setembro choveu, mas abaixo da média histórica de 91,9 milímetros.
No mês seguinte a situação se agravou: outubro de 2014 foi o pior desde 1985.
Alckmin se elegeu no dia 5 daquele mês.
Perguntei ao governador se ele
descarta o racionamento em 2015. “Nós já ultrapassamos o período mais crítico.
Terminou o inverno, estamos no meio da primavera, e a parte pior da seca já
passou. A preocupação é a seca do próximo ano.” Nesse exato momento seus
netinhos gêmeos entraram no gabinete – um numa bicicleta, outro num triciclo.
“Ôôôôô, temos visita”, interrompeu, animado. “Quem quer ‘cocolate’? Vamos lá”, disse o governador, saindo do
escritório com a pequena dupla.
Num
parque na Zona Norte de São Paulo, no final de julho, Alckmin caminhava
apressado ao lado de Aécio Neves, tentando fugir da garoa fina que ameaçava
apertar. “Doutor Ulysses contava uma história que Napoleão, ao escolher seus
generais, procurava saber se eles tinham sorte. Aécio tem sorte. Trouxe até
chuva”, disse o governador, repetindo a história do livro de Ulysses Guimarães.
Oito anos mais velho que Aécio, o paulista parecia pertencer a duas gerações
acima em seu uniforme de campanha: camisa de manga comprida com calça de sarja,
um pouco curta e larga, sustentada na altura do umbigo por um cinto já gasto.
Naquele dia vestia um paletó cinza, que sobrava nos ombros. O mineiro combinava
sapatênis, calça mais justa, de cintura baixa, e camisa sobreposta por outra
mais larga, de camurça cinza, que fazia a função de casaco.
No decorrer da campanha, Alckmin se
esforçou para mostrar lealdade ao candidato presidencial do partido,
principalmente porque comprou a tese que o mineiro lhe vendeu assim que começou
o segundo turno: ele não disputaria a reeleição, em caso de vitória. “Esse é o
Aécio, veio conhecer aqui o trabalho para implementar no Brasil”, disse Alckmin
durante visita a uma clínica de reabilitação de usuários de droga em Botucatu.
“Aécio estava aqui”, comentou com eleitores da Zona Leste, minutos depois de se
despedir do tucano.
O empenho do governador paulista,
sobretudo nos compromissos em São Paulo, lhe rendeu o apreço do mineiro.
“Obrigado por tudo, você foi um parceiro, um irmão”, disse o senador, num
telefonema, ao deixar os estúdios da Globo, no Rio, após o último debate contra
Dilma Rousseff, dois dias antes do segundo turno. Alckmin, porém, não deixou de
operar de acordo com o que lhe era conveniente. Assim como Aécio incentivou o
“Lulécio”, em 2006, ele estimulou a dobradinha Marina e Geraldo, o “Marinaldo”,
em 2014. Colocou em seu programa na tevê o candidato a vice de Marina, Beto
Albuquerque, e sempre que pôde elogiou a candidata, com quem estampou 40
milhões de santinhos.
Alckmin destaca a “identidade” com o
povo paulista como um dos fatores de seu sucesso eleitoral. Perguntei-lhe se
isso não seria um empecilho para uma corrida nacional, daqui a quatro anos, e
ele respondeu da maneira mais burocrática: “Minha meta não é ser candidato a
este ou àquele cargo. Nosso dever é fazer um bom governo em São Paulo.” Depois
desconversou: “Quatro anos são quatro séculos.”
Fernando Henrique Cardoso também vê
em Alckmin “o espírito de São Paulo”. “Não é um espírito de mudança brusca. O
Geraldo não é uma pessoa de rupturas. É uma pessoa de continuidade”, declarou
FHC, para quem o governador não é conservador, mas “muito católico”. O
ex-presidente, porém, admite que a paulistice pode ser um elemento limitador em
2018. “Todos os políticos de São Paulo têm sempre dificuldade, porque, como São
Paulo cresceu muito e tal, frequentemente em outros estados é o primo rico. Mas
o Geraldo tem um jeito do interior de São Paulo que pega outros estados”, disse
FHC, em uma conversa por telefone em novembro, antes de viajar para o exterior.
“Agora, se isso vai ser suficiente, ainda é muito cedo para dizer.”
O ex-presidente não quis citar
favoritos no PSDB, mas destacou como ponto a favor de Aécio a votação de 2014,
“maior que a dos outros” tucanos em eleições anteriores.
Apesar de dizer que “quatro anos são
quatro séculos”, Alckmin dá pistas sobre o futuro. Avalia que enquanto São
Paulo e Minas não votarem unidos, o PSDB não voltará ao Palácio do Planalto.
Isso significa que, de alguma maneira, ele e Aécio caminharão juntos.
Em
2011, quando retornou ao Palácio dos Bandeirantes, Alckmin pendurou em seu
gabinete um retrato a óleo de 1917 de Rodrigues Alves, “o último paulista
eleito presidente”. Nascido em Guaratinguetá, cidade vizinha a Pindamonhangaba,
no Vale do Paraíba, Alves foi também um dos representantes do compromisso entre
Minas e São Paulo na República do Café com Leite, uma referência aos acordos
políticos entre as oligarquias dos dois estados durante a República Velha. Na
tela, do pintor ítalo-brasileiro Antonio Rocco, vê-se a mesa que Alckmin hoje
usa.
Procuro pelo quadro no gabinete e não
o encontro. Pergunto por ele ao governador. “Vem aqui ver”, me diz, tomando a
dianteira, apressadamente, por um corredor escuro que nos leva a um grande
hall, chamado Salão dos Despachos. Foi para lá que a primeira-dama sugeriu que
se transferisse o retrato – talvez um amuleto, talvez o lembrete de uma
maldição que ronda o Palácio dos Bandeirantes desde sua inauguração, em 1965.
Até hoje nenhum de seus ocupantes conseguiu chegar à Presidência da República.